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Como dizer a Páscoa de outra maneira?

 domtotal.com

A Festa da Ascensão nos atrai para as alturas, mas nos reenvia ao cotidiano da nossa vida.

Por Raymond Gravel*

Páscoa e Ascensão: dois momentos do mesmo mistério; duas faces de uma mesma festa; duas maneiras de contar a Ressurreição. A Festa da Ascensão nos atrai para as alturas, mas nos reenvia ao cotidiano da nossa vida. Jesus foi para o céu, mas para inaugurar o tempo do Espírito Santo e nos enviar em missão para os nossos irmãos e nossas irmãs. Hoje é, portanto, a festa da Igreja, Corpo de Cristo, cuja cabeça está no céu e pés na terra. Que mensagens podemos tirar do livro dos Atos dos Apóstolos e do evangelho de Mateus sobre a festa de hoje?
 
A todos os Teófilos (amigos e amigas de Deus)
 
Lucas é o único que tem o relato da Ascensão. Na verdade tem dois: Lc 24,50-53 e At 1,1-11. Sabemos hoje que o relato de Marcos (Mc 16,9-20) é um acréscimo bem posterior à redação do evangelho, cujo autor inspirou-se nos outros evangelistas. Lucas, após escrever seu evangelho que mostra o acontecimento da Ressurreição como um todo, em suas duas dimensões: horizontal e vertical = Páscoa e Ascensão, no mesmo dia... no livro dos Atos dos Apóstolos, ao contrário, temos dois acontecimentos distintos, separados no tempo (40 dias), que podemos qualificar de tempo teológico de transformação e conversão, para enfatizar simplesmente que os discípulos de Jesus precisaram de tempo para tomar consciência de que Jesus, morto, não somente partiu (Ascensão), mas que também está vivo e presente de outra maneira (Páscoa) na sua Igreja. Além disso, na fé cristã a Ascensão sem dúvida precede a Páscoa, porque os primeiros cristãos constataram, em primeiro lugar, a partida de Jesus antes de se darem conta de que ele estava vivo e presente no meio deles. Por outro lado, como Lucas escreveu seus relatos após os acontecimentos, numa comunidade cristã já bem estabelecida, pôde inverter a sequência, a fim de ter uma lógica maior e uma melhor compreensão.
 
Além de inverter a sequência – Ascensão/Páscoa para Páscoa/Ascensão –, no livro dos Atos, Lucas chega inclusive a separá-los no tempo, para mostrar que o evento pascal diz respeito não somente ao Cristo ressuscitado, mas também aos seus discípulos, que são seu corpo e que, habitados pelo seu Espírito, o tornam presente e atuante no mundo: “Foi a eles que Jesus se mostrou vivo depois da sua paixão, com numerosas provas. Durante quarenta dias, apareceu-lhes falando do Reino de Deus” (At 1,3). Durante este tempo, os discípulos tomaram consciência da missão que Cristo lhes confiou: “Mas recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8).
 
Por outro lado, Lucas nos mostra que Páscoa e Ascensão são o mesmo acontecimento e nos falam de uma mesma realidade. No dia da Ascensão, assim como no da Páscoa, deve-se observar a importância do olhar: na Páscoa, no túmulo, as mulheres olharam para baixo: “Cheias de medo, elas olhavam para o chão. No entanto, os dois homens disseram: ‘Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que está vivo?’” (Lc 24,5). Aqui, no livro dos Atos, a Ascensão, 40 dias depois da Páscoa, o olhar dos discípulos está voltado para o alto: dois homens vestidos de branco dirão aos discípulos: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu” (At 1,11).
 
O Cristo ressuscitado: o Emanuel, Deus conosco
 
No evangelho de Mateus não há relato da Ascensão, como temos em Lucas; há somente um relato da aparição aos apóstolos sobre uma montanha da Galileia, lugar por excelência do encontro com Deus, onde o Cristo ressuscitado transmite aos apóstolos uma tríplice missão: 1) Missão da proclamação (kerigma) às nações (v. 19a); 2) Missão de santificação pelo batismo (v. 19b); 3) Missão de formação para a vida cristã (v. 20a). O exegeta francês Jean Debruynne escreveu: “O Jesus ressuscitado dá aos cristãos três vocações: a inteligência, a ação e o coração; dito com outras palavras, a fé, a esperança e a caridade. Ao pedir para fazer discípulos, Jesus não está preocupado em inflar o número de cristãos, pois há mais a fazer do que se prender a estatísticas. A missão da Igreja não é colonizar o mundo. Quando Jesus diz: ‘Fazei discípulos meus todos os povos...’, ele nos convida a mudar a relação entre os homens. Não podemos escolher o país de nascimento. Mas podemos escolher ser discípulos. As relações com a nação são jurídicas e políticas. A relação do discípulo é uma relação com qualquer um. Jesus nos convida, portanto, a trabalhar para que as relações sociais se tornem relações entre pessoas”.
 
Por outro lado, o cristão continua frágil: ele duvida. “Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram” (Mt 28,17). O verbo “duvidar” não se encontra na Bíblia, exceto aqui e em Mt 14,31, quando Jesus repreende Pedro que começava a afundar quando caminhava sobre as águas. Não é que Pedro não tivesse fé, mas sua fé era tímida; falta-lhe audácia e coragem. Se o evangelista Mateus sublinha a dúvida dos cristãos é porque ele quer mostrar a humanidade da Igreja, com suas fragilidades, seus limites e sua finitude. A fé cristã nunca é uma certeza; é uma esperança. Bernanos dizia: “A fé cristã é, no dia, 23h55 de dúvida e cinco minutos de esperança”.
 
Mas é a esses homens – e poderíamos acrescentar hoje a essas mulheres e homens – que Cristo confia sua missão de humanizar o mundo, para que ele possa encontrar Deus. Santo Irineu dizia: “Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus”. E Jean Debruynne continua: “O cristão está a caminho. Não é qualquer um que chega; é alguém a caminho. O cristão está no canteiro de obras; é um homem de ação, portanto, um homem de esperança. ‘Fazei discípulos meus todos os povos...’. Nós não somos, em primeiro lugar, franceses, bretões ou aposentados; somos, em primeiro lugar, discípulos do Filho do Homem. ‘Batizai...’, ou seja, façam nascer. Façam-nos nascer não somente para o mundo, mas também para o seu coração, e a verdadeira batida do seu coração é o próprio Jesus. Trata-se de amar como nunca amamos. Batizai nas grandes águas da caridade. ‘Ensinai...’, ou seja, abram a inteligência da sua fé. O cristão não vai ao encontro de Deus com os olhos fechados. Ele não pode se contentar com o que aprendeu no catecismo. Nós não vivemos somente com aquilo que sabemos, mas também com aquilo que nos tornamos. O cristão não guarda os mandamentos em seu bolso ou apenas em sua memória, ele deve vivê-los...”.
 
Concluindo, o evangelho de Mateus termina como começou. Começa com José, que recebe a visita do Anjo do Senhor que lhe diz: “Vejam, a virgem conceberá, e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel: Deus está conosco” (Mt 1,23). E termina com Jesus, antes da sua partida, que afirma ser este Emanuel, esse Deus conosco: “Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28,20b). Felizmente, sua presença nunca é uma certeza; seria perigoso; haveria a tentação de impô-lo a todo o mundo. Sua presença é uma esperança. Mas que esperança! Há mais de 2.000 anos, mulheres e homens, apesar das suas dúvidas, testemunham o Ressuscitado, humanizando o mundo e animando-o à maneira de Cristo.

A todas e todos, uma boa festa da Ascensão, a segunda face da Páscoa!
Réflexions de Raymond Gravel
*Raymond Gravel é padre da Diocese de Joliette, Canadá. O texto é baseado nas leituras do Domingo da Ascensão do Senhor – Ciclo A do Ano Litúrgico (1º de junho de 2014). A tradução é de André Langer.

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