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O inferno sou eu

 domtotal.com

Gilmar P. da Silva SJ*
Confesso que não confio muito na razão. Esta, organiza os dados da percepção e forma um mundo na consciência que supomos real. Entretanto, os estados alterados de consciência, descortinam aos olhos uma outra realidade. Neles, os limites entre sonho e aquilo que chamamos real se rompem. Não é menos verdade o mundo visto pelo místico e pelo louco. Estes apenas são organizados por outras instâncias do espírito. O menos racional não é menos plausível.

Talvez por isso eu tenha uma atração pelo surrealismo. Aquilo que a consciência afirma, com seus interditos, dissolve-se no possível da arte. O mundo se liberta das categorias que o forçamos caber. A razão estabelece muitas definições e quer cercar tudo em seus conceitos. Contudo, apesar de toda sua pretensão organizadora, não foi capaz de impedir as grandes guerras, entre as quais surgiu o movimento surrealista. Na verdade, o homem age mais por paixão do que por razão. E insisto em repetir sempre: tal paixão pode ser, inclusive, por uma ideia. O que faz uma ação apaixonada aparentar ser opção racional. Balela! A justificação nem sempre tem a ver com as motivações. Muito sabiamente se encontra no Evangelho de Marcos (8, 21) as palavras de Jesus dizendo que “é do interior, é do coração do homem que saem as más intenções, desregramentos, furtos, homicídios (...)”.

O inferno não é, exatamente, os outros, como se poderia ler equivocadamente o dito sartreano. O inferno sou eu.  Pecado, na tradição agostiniana, consiste em um princípio de fechamento em si. Inferno, consequentemente, seria a radicalização desse auto-enclausuramento. Os outros se nos apresentam infernais porque constituem limite e baliza de nossas ações. O outro me confronta, mostra-me a mim mesmo, obriga-me a sair de mim. Por ele eu conheço o bem e o mal. E eis que ele surge como autêntico interdito. Não posso fazer tudo o que quero. Ele é a árvore do conhecimento do bem e do mal cujo fruto é proibido no relato da criação. Não triturarás o outro com os dentes – poderia ser entendido – senão te perderás de ti, e isso é perder o paraíso, desterrar-se de si. As coisas más vêm do fechamento do homem.

Na Academia Mineira de Letras, em Belo Horizonte, há uma exposição de 100 ilustrações que o pintor surrealista, Salvador Dalí, fez para cada um dos cantos de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. A mostra, que vai até o dia 17 de Agosto, divide-se, como o livro, em três partes: InfernoPurgatório e Céu. Seu caráter onírico desperta sentimentos desoncertantes ante a visão daquilo que está dentro de cada um. Com tal vista, alguém talvez queira recorrer a razão para se escusar do encontro consigo. Contudo, não cabe a discussão sobre a factualidade das realidades transcendentes que a exposição evoca, senão a contemplação estética que abre possibilidade à redenção. A liberdade tão almejada pelos surrealistas passa antes pela libertação de si. E se a razão não é capaz disso por si mesma, quem sabe a arte nos ajude a reconhecer o que nos move, rompendo com nossa má-fé?

*Mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pesquisa em Signo e Significação nas Mídias, Cultura e Ambientes Midiáticos. Graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Possui Graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Experiência na área de Filosofia, com ênfase na filosofia kierkegaardiana. 

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