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OUTUBRO ROSA: O que a dor ensina

A assistente social Rita Marques Ferreira, de 73 anos, sempre foi diligente consigo mesma. Seus compromissos até hoje são registrados diariamente na agenda. E desde os 46, tem um que ela não abre mão: o de fazer a mamografia uma vez por ano. “Quando ainda nem se falava em mastologista, eu já tinha este cuidado”.
A impaciência com as conversas sobre política no consultório, no entanto, a fizeram trocar de médico em 2010 e um novo olhar sobre exames feitos no ano anterior lançaram a dúvida sobre um pequeno ponto na mamografia que até então tinha passado despercebido. Da suspeita, veio uma infinidade de novos exames e um diagnóstico que iria dar um novo curso para sua vida: era câncer o que ela tinha.

Quando saiu o resultado da biópsia ela estava no dentista e a demora da filha que tinha ido buscar o exame já trazia o pressentimento de que as coisas não estavam bem. Mas decidiram abrir juntos o envelope. Ela, o marido e a caçula. Neste momento, a raiva e os porquês foram inevitáveis. No dia seguinte, o noticiário, as pendências do cotidiano e a rotina na vizinhança davam conta que a vida não tinha ficado em suspenso. Ela precisava seguir. “No outro dia ainda chorei, mas decidi lutar”.

A forma como encarou a doença só reforçou a percepção que as pessoas já tinham dela: uma mulher de fibra. E que, muitas vezes, mesmo involuntariamente, também impunha a mesma força aos que estavam ao seu redor. “Ela sempre se mostrou forte e passava força para todos nós. Isso fazia com que a gente sempre acreditasse que ia dar certo”, conta a filha Milena.

Os dias que se sucederam não foram fáceis: 32 sessões de radioterapia, outras tantas de quimioterapia, remédios, trombose, enjoos e dores dilacerantes. “Foi terrível, costumo dizer que a quimioterapia primeiro ela mata, para depois ressuscitar”.

Foi num destes dias ruins que pareciam eternos nos corredores do hospital que ela viu que aquela mesma dor que era dela, também era de muitos. E que ela podia ajudar. “As pessoas ali estavam todas de cabeça baixa e eu fui conversando com um, com outro, a gente rezava, cantava, se reunia e até fazia festa no hospital”.

O que deu, ela também recebeu. “Graças a Deus, sempre tive muito apoio. Meu marido, meus filhos, mesmo o que morava longe, estavam sempre muito presentes. Uma amiga me dava banho, outra ficava encarregada da feira”.

Há pouco mais de quatro anos os exames periódicos na mama não mostram mais nada. Mas as lições que ficaram daquele outubro de 2010 trouxeram para ela mais resiliência e a fizeram deixar para trás também o ímpeto de guardar mágoas por coisas pequenas. “Eu aprendi tanta coisa com este câncer. Eu acho que fiquei mais leve, decidi não ter mais raiva de quem já teve algum embate comigo, estas coisas pequenas não valem a pena”.

A fé, em Deus e na vida, esta permaneceu incólume e foi o que a guiou em outros revezes que vieram depois, até mais duros que o câncer que enfrentou, como a perda de um neto em 2014 e a luta que trava até hoje contra a doença que acomete o marido. “Aprendi que cada dia é um dia. Tem vezes que estou uma fortaleza, tem outros que me sinto triste, mas a vida continua e temos que seguir adiante”.

O amigo, o cabelo, a aceitação
Rita é amiga e cliente do cabeleireiro Roni Gonçalves, de 54 anos, de longa data. “O Rony é uma pessoa sensível, muito humana, participou de muitas coisas na minha vida, casamentos, batizado dos netos, sempre contei com ele para tudo”.

Nesta etapa da vida de Rita, ele também se fez presente. Mesmo com mais de 30 anos de profissão, já tendo confeccionado dezenas de perucas para mulheres com câncer, desmoronou ao receber a notícia. “A Rita é uma mulher maravilhosa e quando ela veio aqui e me contou, eu chorei, foi um baque muito grande. Quando vem uma pessoa dizendo que precisa de peruca porque está com câncer, você fica muito triste e tudo, mas quando é aquela pessoa mais próxima, que está aqui toda semana, que você gosta, eu fico devastado. A gente fica se perguntando o porquê disso tudo estar acontecendo”.

A perda do cabelo, apesar de não trazer dor física, é um dos momentos mais sensíveis de quem passa pelo tratamento de câncer. Mexe com a estima, com as certezas e desnuda aos outros os seus dramas pessoais. A decisão de raspar a cabeça veio na segunda sessão de quimioterapia e Rita decidiu, mais uma vez, enfrentar também esta etapa de frente, de forma prática e sem choro. Até cantarolou uma música qualquer durante o procedimento.

Rony preparou uma peruca para ela. Na hora, Rita ficou satisfeita com o resultado, mas depois ao se olhar no espelho não se enxergava. “Eu não me sentia eu. Sei que para muitas pessoas isso ajuda na estima, mas eu não me via ali. E decidi que ia doar a peruca e os lenços lá no ICC e que ia sair de cabeça pelada por ai”.

Mas ela diz que este tipo de decisão não é fácil. “Ainda existe muito preconceito, as pessoas te olham com pena e isso é muito ruim. Mas acho que as pessoas tem que ficar como se sentem melhor”.
O Povo 

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