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O legado de Ferreira Gullar

Gullar era anárquico, contemplativo e sensível. (Divulgação)
Por Pedro Zambarda
Na ocasião da morte de Clarice Lispector, em 9 de dezembro de 1977, Ferreira Gullar escreveu a seguinte poesia:
“Enquanto te enterravam no cemitério judeu / do Caju / (e o clarão de teu olhar soterrado/ resistindo ainda) / o táxi corria comigo à borda da Lagoa / na direção de Botafogo / as pedras e as nuvens e as árvores / no vento mostravam alegremente / que não dependem de nós”.
E hoje, na ocasião da sua morte, cinco dias antes do aniversário do falecimento de Clarice, eu releio os mesmos versos. Gullar era anárquico, contemplativo e sensível.
Comecei a escrever ficção quando tinha oito anos num caderno que tinha em Santos na companhia dos meus pais. Mas foi um professor de literatura no colegial com os livros de Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar que me mostraram o poder das palavras, que possuem um profundo significado quando colocadas no papel. Cada um delas.
Diferente de Fernando Pessoa ou Camões, Gullar também me ensinou que era possível fazer rimas bobas, assimétricas e versos soltos que descreviam cenas, angústias e desejos. Ele me mostrava que escrever tinha uma lógica própria. “Traduzir-se” é o meu mantra sobre existência e linguagem. “Uma parte de mim / é multidão; / outra parte estranheza / e solidão / Uma parte de mim / é só vertigem / outra parte, / linguagem”.
E não há texto que traduza melhor em arte escrita o que foi a ditadura militar no Brasil do que seu “Poema Sujo”. É o meu poeta de releituras constantes em busca de inspiração.
Escreveu para séries de TV, como Carga Pesada na Globo, e possuiu uma obra como crítico de arte – além das suas obras como pintor. Foi múltiplo em vida.
Tinha uma grande fila de desafetos, começando pelos escritores concretistas Augusto e o falecido Haroldo de Campos, que também me ensinaram a escrever poesia. No entanto, Ferreira Gullar me mostrava que a arte não precisa e nunca precisou se encaixar em rótulos. Era o que ele classificava como neocroncreto. Me ensinou que os versos podem ser, de fato, livres.
Entrou na Academia Brasileira de Letras, que debochava antes, em 2014 aos 83 anos. Era maranhense de São Luís, filho de quitandeiro e amigo de José Sarney. Foi comunista do Partidão. Virou, depois do fim da ditadura, um crítico das esquerdas e um opositor dos governos de Lula e Dilma, além do próprio PT.
Era ressentido e beirava o reacionário em muitos dos seus textos antipetistas publicados na Folha de S.Paulo, mas a discordância que tive de suas opiniões políticas nunca me tirou o brilho que tive ao reler sua obra artística.
Numa pequena coletânea de poesias que publiquei ano passado pela editora de estudantes da USP, dediquei minha inspiração no texto a três poetas: Gullar, Drummond e Fernando Pessoa. Se o último me ensinou a importância de encarnar personalidades diferentes, o primeiro me deu liberdade na escrita e contato com a realidade mais dilacerante.
Ferreira Gullar morreu neste domingo aos 86 anos de pneumonia no Rio de Janeiro. Tal como “as pedras e as nuvens e as árvores” na morte de Clarice Lispector, o mundo mostrou alegremente que não se importa com ele ou conosco.
Ficam comigo as lições aprendidas em sua poesia, arte e linguagem.

DCM

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