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A arte de rir diante da morte

Kurt Vonnegut não teve uma morte espetacular. O escritor norte-americano tinha 84 anos e faleceu, numa noite de 11 de abril, há exatos 10 anos, vitimado por lesões cerebrais provocadas por uma queda. Um acidente doméstico, infelizmente demasiado comum entre pessoas de idade mais avançada.

Sair de cena assim parece mais uma piada, de alguém que não cansou de fazer troça da morte. Um ano antes da queda fatal, Vonnegut disse, em entrevista à revista Rolling Stone, que processaria a Brown & Williamson, fabricante de cigarros que tem, entre suas marcas, a Pall Mall. O escritor era um fumante compulsivo, desde a adolescência. "Bastardos mentirosos! Na embalagem, a Brown & Williamson prometeu me matar", reclamou.

Veterano da Segunda Guerra Mundial, Vonnegut disse em outra entrevista, publicada na Paris Review nos anos 1970, que exigiria um funeral com pompa militar. E há ainda sua piada favorita: o desejo que, após sua morte, dissessem que o velho Kurt (um ateu convicto) estaria no céu.

Lembrar sua relação jocosa com a morte não é apenas uma forma de iniciar um texto sobre os 10 anos que os dois se encontraram. A morte foi um tema recorrente do autor e ele riu, dela e com ela, tanto quanto pode. Ela está à espreita, em "Cama de Gato" (1963); bafejando ente os personagens de "Matadouro 5" (1969); e no horizonte próximo para aqueles que povoam as páginas de "Café-da-manhã dos campeões" (1973) - para citar três de seus trabalhos mais conhecidos.

Pós-moderno

Apesar do tema clássico, Vonnegut foi um escritor de seu tempo. Sua obra refletia muito do espírito dos EUA, em décadas de transformação veloz, de alienação e de mergulho no consumismo. Temporalmente, costuma-se alinhar sua obra entre a dos ditos "pós-modernos". Pela invenção formal de alguns de seus romances, é fácil entender as razões deste segmento da crítica tomar assim a sua obra.

A palavra, contudo, pode atrapalhar e afugentar quem desconfia deste tipo de escrita. E seria uma pena, porque a literatura de Kurt Vonnegut não é do tipo que exige do leitor um doutorado em literatura ou uma bagagem robusta da história literária. E, ainda que sendo pós-moderna e irremediavelmente ligada ao século XX, há algo de antigo, de clássico naquilo que escreveu. Vonnegut foi o grande nome da literatura anglófona que, no século passado, representou a tradição dos satiristas, que remonta a Mark Twain, dos EUA, e, antes dele, do irlandês Jonathan Swift.

Ler Vonnegut era um prazer a ser cultivado, pois lembrava que a inteligência não precisava ser chata, nem uma coisa de esnobes. Hoje, nesta década que seguimos sem ele, é uma leitura ainda mais importante. Urgente até.

A eleição de Donald Trump despertou o interesse do leitor norte-americano - e, por tabela, de outras partes do mundo - pela ficção distópica. A distopia é uma utopia negativa. Na literatura, no cinema, nos quadrinhos, se traduz num tipo de história ambientada no futuro (próximo ou distante), em que a vida costuma ser submetida a opressões aparentemente incontornáveis. "1984", romance publicado em 1949, pelo inglês George Orwell, se tornou novamente um campeão de vendas. Ievguêni Zamiátin ("Nós") e Aldous Huxley ("Admirável Mundo Novo") também estão por aí.

Quase não se tem falado em Vonnegut. Ok, ele nem é o futurologista com a melhor pontaria. Mas, em vez de uma visão pessimista em absoluto, sua literatura traz inscrita uma lição existencial, de como encarar a vida e o mundo em tempos tão difíceis. E olha que, como soldado, ele viu uma cidade inteira, Dresden, na Alemanha, ser arrasada por bombardeios. É um olhar corajoso, que ri e pensa ao mesmo tempo. E, no fim, se tudo der mesmo errado, como parece que vai dar, você soube se divertir mais do que os outros.

Sua obra merecia melhor atenção entre nós. Muita coisa foi publicada em formato de livro de bolso, pela L&PM, e é fácil de ser encontrada. Até o fim do ano, a Aleph edita uma nova tradução do romance "Cama de Gato" (de Livia Marina Koeppl) e a Rádio Londres, a coleção de ensaios póstuma "Se isto não é legal, o que é então?" (2013, com tradução de Petê Rissatti).

Diário do Nordeste

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