Pular para o conteúdo principal

Livros para contar o Ceará

Na porta envidraçada que dá acesso à biblioteca de José Augusto Bezerra, a mensagem aparece literalmente transparente: “Bate o pó das tuas sandálias, pois o chão em que pisas é solo sagrado”.

Bastam alguns instantes de conversa com o bibliófilo – fundador da Associação Brasileira de Bibliófilos e ex-presidente da Academia Cearense de Letras – para então compreendermos o porquê de ele ter elegidoa passagem do Êxodo para ilustrar o cartão de visitas de onde mora.

É que José Augusto posiciona os livros que possui numa espécie de panteão sagrado. Junto deles, há as condecorações que ganhou, há escritos que esboça em momentos de inspiração, há arte brotando por entre as quatro paredes e as prateleiras que nelas estão. Há também, nas páginas impressas sob seu domínio, a história do livro no Ceará, de quando aconteceram as primeiras publicações neste solo, de quem foram os nomes mais proeminentes no Estado.

Uma digressão que começa com a formação da Impressão Régia – considerada a primeira editora nacional –, que chegou no Brasil precisamente no dia 13 de maio de 1808, no Rio de Janeiro, então capital do império. Veio trazida pela Família Real Portuguesa. Informação essa que nos faz concluir – visto que a Impressão abarcava as publicações de todas as províncias do solo brasileiro – que é quase no mesmo período, compreendido entre 1808 e 1824, que o Ceará conseguiu também obter uma imprensa própria. Uma parte da história do Estado, inclusive, que se liga de maneira bastante forte com a história brasileira como um todo.

“O Brasil foi o último país das Américas a ter uma imprensa própria, justamente porque os portugueses queriam ter um controle dessa matéria, que toca numa questão que envolve segurança nacional. Tanto é que, só em 1822 – 14 anos depois de ter chegado a imprensa –, o país proclamou sua independência”, relata José Augusto.

Primeiras publicações

Já inserido nesse contexto editorial e escrito pelo naturalista português João da Silva Feijó (1760-1824), o livro “Memória econômica sobre a raça do gado lanígero da capitania do Ceará” é considerado a primeira obra impressa sobre o Ceará. Dos três exemplares originais pertencentes a outros bibliófilos brasileiros, um se encontra no acervo de José Augusto. O estudioso explica que, antes da referida publicação, diversos manuscritos já haviam sido escritos por Feijó. No entanto – como os mesmos não chegaram a se transformar em folhetos impressos – não poderiam adentrar no histórico de publicações sobre a terra.

Sob outro contexto, o primeiro livro impresso escrito efetivamente por um cearense aconteceu em 1817, “Oração de graças”, de Gonçalo Inácio de Loyola Albuquerque e Melo, o Padre Mororó (1774-1825), natural de Groaíras. A obra reúne preces do sacerdote feitas à realeza, atividade que Mororó exercia antes de se tornar uma figura revolucionária. Outro dos primeiros livros publicados aqui é de 1840, “A Eleição de um Senador”, obra de autoria anônima que também se encontra em uma das prateleiras de José Augusto e carrega uma curiosa história.

“Nas páginas da publicação, o escritor fala da eleição de um senador aqui no Ceará e suas manobras políticas para conseguir o cargo. Ocorre que o senador, ao ler o material, discorda do autor e faz observações à mão no próprio livro”, detalha. “Possuir esse exemplar é interessante, então, porque permite que vejamos os dois lados da questão, um da acusação e outro da defesa. É um recurso inteligente de como podemos observar certas coisas que já naquela época aconteciam”.

Mercado editorial

Quanto ao mercado de livros no Ceará e a forma de popularização do conhecimento por vias impressas de publicação literária, José Augusto Bezerra considera que os colégios Liceu do Ceará e Colégio da Imaculada – duas das mais tradicionais agremiações escolares locais – foram os grandes responsáveis pela formação do público leitor cearense.

“Eles criaram um ambiente para que as pessoas aprendessem sobre as coisas, especialmente numa época – de forma mais precisa entre 1870 e 1900 – em que todo o mundo vivia a Belle Époque, um momento de grande efervescência cultural, sobretudo literária”. 

Assim, ficava mais largo o campo de atuação das primeiras gráficas e editoras que, por aqui, fizeram morada com o paulatino crescimento não apenas do público leitor, mas da rede interna de escritores. É o caso da Impressão Tipográfica Patriota, da Tipografia Minerva, da Tipografia do Libertador, da Tipografia Cearense, dentre várias outras.

“O Ceará, como se percebe, não ficou longe do movimento de agitação cultural vivenciado em outras esferas do mundo. Logo depois de 1850, já podíamos ler, por exemplo, o Juvenal Galeno (1838-1931) que escreveu ‘A Porangaba’, em 1861, considerado o primeiro livro de romantismo do Ceará”, aponta o estudioso.

Avançando historicamente, José Augusto Bezerra elege o movimento Padaria Espiritual – ocorrido entre 1892 e 1898 cujo objetivo era despertar, inicialmente apenas nos moradores do Centro de Fortaleza, o gosto pela literatura que, à época, estava esquecido – como o grande fator de continuidade da qualidade literária no seio cearense.

“Foi ali que surgiram os nomes que puderam dar novos olhares sobre a nossa produção. É o caso de Antônio Sales, Álvaro Martins e Adolfo Caminha, por exemplo”, pontua. Vultos que soergueram outras grandes figuras literárias posteriormente, caso de Rachel de Queiroz (1910-2003), Capistrano de Abreu (1853- 1927) e Gustavo Barroso (1888-1957). 

Diário do Nordeste

Comentários