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Luis Augusto Fischer: Zen e a arte de aprender o frio

Foto: William Morrow / HarperCollins
A janela me confirma pelo olho aquilo que o corpo já vem sentindo: o frio está mesmo chegando. Depois de tanto calor no verão, agora se anunciam dias de arrepio na pele, cheiro diferente nas coisas, gosto pelo recolhimento. Muita leitura. Tempo também de viagem, do gosto por ficar do lado do sol. Lagartear.
Não sei se meus filhos já aprenderam a gostar do inverno como ele merece. Andar pela rua não tá fácil em Porto Alegre, mas caminhar no frio, mãos no bolso e focinho afundado no cachecol, orelhas protegidas, bá, tem pouca coisa tão boa quanto isso.
Será também um tempo para ser mais lento. Ter a velocidade em que deve se desenvolver uma conversa ao pé do fogo, quando a gente presta atenção à dança das fagulhas e das labaredas e, sem perder nada, também à fala de cada um na roda, especialmente se alguém começar a contar uma história. História que vai nos encontrar em estado de relaxamento interno, disponível para a surpresa do relato.
Quando será a hora adequada para mostrar aos filhos ainda pequenos a maravilha do Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas? Será que para as novas gerações o livro de Roberto Pirsig fará o maravilhoso estrago que fez em mim e nos meus contemporâneos?
Saído em 1974, traduzido apenas em 1984 ao português brasileiro (tradução de Celina C. Cavalcanti, ed. Paz & Terra), o livro captou como poucos o espírito do tempo, em uma dimensão cada vez mais claramente fundamental: a relação da contracultura (hippismo, vida alternativa, rejeição do consumismo, visão oriental da vida, gente-finice em geral) com a tecnologia (representada ali pela motocicleta – oh, céus, quão antigos ficaram aqueles tempos pré-computador pessoal e pré-internet!).
Mas isso na embalagem de um romance, sim senhor: uma história forte de um pai com seu filho (o narrador, que viaja de moto por estradas secundárias dos EUA, entre Minnesota e a Califórnia, tendo seu filho de 11 anos na garupa). Acompanham esses dois um casal, em outra moto. A viagem dura 17 dias, durante os quais desde logo fica clara uma enorme diferença entre o narrador e seu amigo, que dirige a outra moto: enquanto o narrador quer entender sua moto, quer compreender as formas por detrás das aparências, o amigo prefere apenas dirigir sua máquina, esperando que esteja sempre boa.
Dessa diferença de temperamento, singela, o narrador deriva uma longa conversa, que atravessa o relato todo, para distinguir entre uma visão clássica (a dele) e outra romântica (a do outro). O clássico é mais frio e vai além das aparências, o romântico é impressionável e costuma parar na casca das coisas, com a vantagem de ser entusiasmado. (Pirsig estudou Filosofia, incluindo a oriental.)
Mas há outra camada narrativa, não menos forte. É que o narrador, um pensador ao vivo e a quente que vai relatando o que vê e vive e refletindo organizadamente sobre isso, tem no presente da história a singela profissão de redator e revisor de manuais técnicos – sabe esses que vêm junto com a batedeira e o celular, e que ninguém lê? –, mas no passado foi professor de língua materna, em escolas. Entre os dois mundos, um abismo, sobre o qual pende a ponte da linguagem, que Pirsig atravessa garboso, nós na garupa de sua moto de palavras.
E ainda outra: o narrador vai contando da viagem, de seu filho, das dificuldades da relação entre eles dois, mas também vai lembrando a vida, os pensamentos e os sofrimentos de outro personagem, Fedro. Quem é ele? Não posso contar, porque ia estragar a surpresa, assim como não dá para dizer como tudo termina – mas é lindo o ponto a que chega o relato, pode crer.
Pirsig teve consciência clara do que estava fazendo. O original foi rejeitado 120 vezes até ser aceito, mas antes disso ele havia escrito um volume maior de texto, que ele mesmo segurou, por se dar conta de que faltava à primeira redação algo essencial – uma narrativa, com personagens de carne e osso, feitos ambos de palavras.
Olho mais uma vez a luz enviesada que banha Porto Alegre nesse outono e penso que deverá funcionar com os mais novos esse livro tão peculiar. Ao menos enquanto durar nosso conflito entre ser e ter, entre ciência e ética, entre pensar e sentir – quer dizer, enquanto nós formos como somos.
Vou ali contar pras crianças algo disso tudo.
Zero Hora

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