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Paranoia nuclear, disputas ideológicas e narrativas sem cérebro eram arsenal dos filmes de ação oitentistas

Com o fôlego renovado por conta da Guerra Fria, Hollywood entendeu o recado e lançou uma sequência cavalar de produções que pingavam testosterona através dos anos 1980. Objeto máximo da era Ronald Reagan (canastrão em forma de presidente que ficou de 1981 a 1989 no cargo) grande parte desse material refletiu os tempos em que foram produzidos e esgarçaram um modo estético e cultural de realizar cinema.

Desde o término da Segunda Guerra Mundial, a quebra de braços ficou entre Capitalismo e o Comunismo, representados pelos Estados Unidos e pela União Soviética (URSS) respectivamente. As duas potências disputavam palmo a palmo áreas de atuação pelo globo e ambos empreendiam uma corrida armamentista caótica. A ameaça de um conflito atômico era eminente e, além de ogivas nucleares, os caubóis do Tio Sam possuíam outra arma poderosa na manga: o cinema como território de propaganda ideológica.

Capaz de influenciar as audiências e propagar uma série de ideologias que legitimam projetos políticos, militares e econômicos de grupos poderosos, vale lembrar que os filmes sempre foram utilizados pelos governos de países como Rússia e Alemanha como forma de propaganda. Ou seja, um expediente manjado que em determinados espaços de tempo pode ter uma presença um pouco mais explícita.

Exatamente em 1980, durante a disputa pela Casa Branca com Jimmy Carter, Ronald Wilson Reagan (1911-2004) soltou uma pérola: "Minha meta é conseguir que os americanos voltem a confiar no país". Com essa falácia, após ser eleito, o ex-ator lançou uma política econômica agressiva conhecida como "Reaganomics", baseada em cortes no orçamento federal e redução de impostos para incentivar a produção e investimentos. Um clima muito parecido com o tipo de diálogo fomentado pelo abominável Donald Trump.

Através da biografia "Morning in America" ("Amanhecer na América", sem tradução em português), o historiador americano Gil Troy aponta que para entender a era Reagan, é preciso considerar sua presidência como um fenômeno político e cultural. De fato, a linha entre ficção e realidade na política perpetrada por essa figura era nebulosa. Com poder de fogo altamente ideológico, era capaz de confundir alhos e bugalhos ao mesclar política e símbolos culturais a todo instante.

Dois casos ilustram esse ambiente hostil. Em 1985, depois que terroristas sequestraram um avião da TWA, Reagan tascou um "estou contente. Vi Rambo ontem à noite. Agora já sei o que fazer da próxima vez". Em outra situação, idealizou o programa "Guerra nas Estrelas", espécie de escudo espacial para interceptar os mísseis nucleares soviéticos. Esse tosco projeto nunca saiu da mesa de planejamento, entretanto acelerou a corrida armamentista ao limite. Um fanfarrão.

Batalha

Com a mesma força com que esbravejava contra a ameaça comunista na América Latina e no resto do universo (a chamada "Doutrina Reagan") e combatia a recessão nos Estados Unidos, o presidente fez uma escalada contra a indústria do cinema pornô, perseguiu ativistas de esquerda (ele possuía um longo histórico nessa área, por sinal) e encarnou a imagem do típico conservador estilo anos 1950. Tornou-se o avatar máximo do distinto "Sonho Americano".

Colocar somente na conta do 40º presidente toda a evolução, auge e queda do cinema de ação dos anos 80 pode parecer exagero e até maniqueísmo, porém, é difícil desassociar a imagem da política de "resgate do orgulho ianque" das produções marombadas do período. Tomemos o caso de um dos exemplares máximos da grosseria, o Rambo.

Os filmes da série Rambo, personagem interpretado por Sylvester Stallone, são uma considerável demonstração de como esse processo de recuperação da moral aconteceu. O herói da guerra do Vietnã inspirou várias cópias desde sua estreia e catalisou toda a máxima do homem capaz de resolver tudo na bala. Uma predominância exata do individualismo exacerbado e ególatra, tão marcante aos anos 1980. O personagem evoluiu conforme os anos (e políticas) se passavam.

No excelente filme de 1982, "Rambo - Programado Para Matar", o veterano de guerra John Rambo é um verdadeiro pária. Marginalizado, é um indivíduo perturbado com as tretas vividas no Vietnã e após tentar visitar um colega do exército é preso sem motivo e humilhado por policiais de uma pequena cidade no interior dos Estados Unidos. Toda essa fúria reprimida explode como um vulcão e a chinela canta legal no filme.

No dramático desfecho do longa, o desabafo final de Rambo para o mentor, o Coronel Trautman (Richard Crenna), deixa evidente a crítica sobre o modo como os soldados foram tratados no conflito. Rambo não se enquadra mais na sociedade. Sem amigos, emprego, o único lar e linguagem possível para o personagem é a guerra.

Todo esse cenário é modificado nas produções posteriores. Com a necessidade de cicatrizar feridas e evidenciar o espírito patriótico, Rambo ganhou outras matizes. Em "Rambo II - A Missão", o herói (dessa vez mais bombado) retorna ao Vietnã com a missão de fotografar campos de prisioneiros de guerra. O que se vê depois desse mote é uma máquina de matar que, além de resgatar os prisioneiros de guerra, arregaça pra valer qualquer vietnamita que cruze seu caminho, elimina russos e ainda desfere uns tabefes em uns compatriotas.

Quando se pensa o terceiro capítulo, "Rambo III" (1988), a coisa ganha ares de piada. Rambo está no Afeganistão em uma tentativa suicida de resgate de seu amigo, o tal Coronel Trautman. Rambo se une aos os rebeldes afegãos e consegue destruir os inimigos soviéticos que haviam invadido o País. O filme, olhem só, foi "dedicado ao valente povo do Afeganistão". O mesmo lugar invadido pelos EUA nos primeiros e questionáveis conflitos dos anos 2000, na caçada ao perigoso Bin Laden.

Leituras

Esta imagem guerreira e poderosa do personagem foi a pólvora da ideologia patriótica presentes na Era Reagan. Porém, negar a grande maioria dos filmes de ação dos anos 1980 é, além de capricho, um desserviço ao questionamento crítico da indústria cultural.

Os filmes de gênero são capazes de tratar sobre assuntos reais e discutí-los abertamente. Mesmo com uma farta fatia de produções totalmente desmioladas, estas obrasse guardam o valor de denunciar contextos históricos, sociais e políticos. Essa é uma das pertinentes e certeiras magias do cinema. (Al)

Diário do Nordeste

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