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Música para a esperança: do Complexo da Maré para o Vaticano

Orquestra tocaria para o papa aos pés do Cristo Redentor, em julho de 2013, mas o mau tempo acabou afogando seu sonho.
(29 mai) Músicos da Orquestra Maré do Amanhã tocam aos pés do Cristo Redentor
(29 mai) Músicos da Orquestra Maré do Amanhã tocam aos pés do Cristo Redentor (AFP)

Em 2013, as lágrimas de Débora Santos caíam como a chuva que a impediu de tocar para o Papa Francisco no Rio de Janeiro. Quatro anos depois, ela chora de alegria com a ideia de voar para Roma.
Junto à Orquestra Maré do Amanhã, nascida dentro de um projeto social fundado em 2010 em uma das favelas mais violentas do Brasil, a violoncelista de 18 anos tocará no Vaticano no próximo sábado (3).
Uma justa recompensa após ter perdido na última hora as Jornadas Mundiais da Juventude em sua cidade: apesar de estar previsto que a orquestra tocaria para o papa aos pés do Cristo Redentor, em julho de 2013, o mau tempo acabou afogando seu sonho.
"Ficamos muito tristes, porque preparamos uma música para ele. É muito gratificante saber que todo nosso esforço está sendo recompensado. É maravilhoso. Chorei muito. Fiquei muito feliz. Finalmente, depois de quatro anos...", afirma.
No sábado, o grupo de 26 brasileiros com entre 14 e 19 anos realizará, finalmente, o sonho de tocar para Francisco, por ocasião da chegada do "Trem das crianças" ao Vaticano. Entre o público estarão 400 jovens procedentes das regiões do centro da Itália afetadas por terremotos recentemente.
Notas contra tiros
A 10.000 quilômetros do Vaticano, no Complexo da Maré, a terra não treme, mas a troca de tiros marca o ritmo da vida de seus habitantes, reféns da guerra entre narcotraficantes e das contundentes intervenções policiais.
Segundo a ONG local Redes da Maré, ocorreram 18 mortes violentas entre janeiro e abril neste conjunto de favelas que tem 140 mil habitantes, próximo ao Aeroporto Internacional do Rio, superando o total de óbitos registrado em 2016.
Na segunda-feira, os jovens da orquestra subiram o Corcovado, onde deveriam ter tocado para Francisco, para participar de uma missa na véspera de sua viagem, mas dois integrantes do grupo não puderam sair de casa devido a um tiroteio provocado por uma operação policial.
"Já tivemos que cancelar muitos ensaios por culpa da violência", lamenta Bruno Costa, um contrabaixista de 16 anos cujas notas são frequentemente sufocadas pelas detonações.
"É muito complicado me deslocar pelo bairro com meu instrumento, que é muito grande. Os traficantes pensam que estou levando uma arma na capa do instrumento, ou um corpo".
Novos horizontes
A própria gênesis do projeto tem suas raízes na violência que afeta o Rio diariamente. Foi na Maré onde a polícia encontrou o carro sujo de sangue de Armando Prazeres, o célebre maestro assassinado em 1999.
Após vários anos de depressão, seu filho, Carlos Eduardo, decidiu se dedicar de corpo e alma a mudar a vida dos jovens das favelas pela música.
Hoje, o projeto está presente em todas as escolas da Maré, e 2.200 jovens tiveram seu primeiro contato com instrumentos graças à ONG.
"As expectativas de vida, os sonhos que tinham, eram sonhos muito pequenos. Estavam presos naquele mundo deles. Arte e cultura abrem a cabeça deles para enxergar um horizonte maior. Hoje eles enxergam estudar em Viena, fazer musica profissionalmente, fazer uma faculdade de musica. Coisa que nem passava na cabeça deles quando começaram", disse Carlos Eduardo Prazeres.
"Quero fazer faculdade, e quero tocar numa orquestra. Não aqui no Brasil. Nada contra, mas meu sonho é tocar na sinfônica de Berlim. Acho que posso ir longe se eu estudar bastante. Se der meu melhor com certeza consigo chegar lá", declarou Débora.
Em Roma, o repertório será composto por clássicos da música erudita e tradicional brasileira, mas também incluirá dois tangos, de Astor Piazzolla e Carlos Gardel, para recordar a terra do Papa argentino.
O Papa receberá um violino branco assinado pelos jovens músicos, que esperam trazer outro instrumento para o Rio com uma mensagem especial escrita por Francisco para seus companheiros no Brasil.
"O que mais me dói é ver esses meninos prosperando mas com o sonho de sair da Maré, porque é um lugar onde não está dando para viver. É muito triste não ter o sentimento de pertencimento. É isso que eu queria tentar mudar, que as pessoas entendessem que a paz é possível", concluiu Carlos Eduardo.

AFP

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