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Palestra sobre o centenário da obra "Os Bruzundangas", do autor pré-modernista, acontece na ACL

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Uma das principais características para que uma obra ganhe status de clássica - seja em quaisquer das searas artísticas - é seu caráter atemporal. Naturalmente, isso se dá por meio de um intricado processo, que envolve, entre outras variáveis, a capacidade da mesma de dialogar com o instante contemporâneo ao qual pertence e suscitar discussões que, seja em qual período for, soem necessárias, urgentes.
"Os Bruzundangas", do escritor carioca Lima Barreto (1181-1922), encaixa-se nesse perfil. O livro, concebido originalmente em 1917 - apesar de ter sido publicado postumamente, em 1923 - chega ao seu centenário de nascimento mais atual que nunca. Especialmente porque, já naquela época, foi capaz de evocar fatos e acontecimentos que, para nós, frente à nebulosa conjuntura política atual brasileira, soariam inteiramente verossímeis, quiçá realistas.
É uma obra crítica que, mais que simplesmente oferecer uma boa leitura ao público, consegue levantar impressões densas e alimentar pertinentes questões relacionadas ao nosso cotidiano. "Foi exatamente esse viés que me fez estudar a produção do Lima Barreto, no início dos anos 2000. Ele é um autor muito irônico e alegórico, que se utiliza de um discurso supostamente metafórico para falar daquilo que realmente acontece", esclarece a romancista, poetisa e professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal do Ceará (IFCE) de Ubajara, Nádya Gurgel.
Ela é que estará à frente da palestra "Centenário da obra crítica e hodierna 'Os Bruzundangas', de Lima Barreto", marcada para acontecer nesta terça-feira, a partir das 9h, na sede da Academia Cearense de Letras (ACL), no Centro.
O evento é organizado pela Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB), entidade que, mensalmente, realiza encontros no espaço da ACL com vistas a discutir a relevância temática de grandes obras da Literatura Brasileira.
Para a reunião de junho, Nádya - sócia efetiva da AJEB desde 1999 - adianta que o diálogo com o público participante deverá ser grande, fazendo com que o trânsito de ideias otimize perspectivas de análise do conteúdo proposto. Inclusive, o artigo escrito por ela, que dá nome ao colóquio, será distribuído no local, viabilizando prévias leituras e percepções.
Narrativas
"Os Bruzundangas" é uma coletânea de crônicas que descreve as peculiaridades da República da Bruzundanga, país idealizado por Barreto na publicação. Tal nação é concebida pelo carioca como forma de narrar, figurada e literariamente, as características estruturais brasileiras.
O estranho termo que intitula a obra faz alusão à ideia de bagunça, desordem, e é exatamente esse espírito que o literato atribui à nação que criou. "Assuntos como repasse de propina, nepotismo e corrupção, coisas que são tão atuais a nós, já eram comentados pelo Lima no início do século XX, o que demonstra a atualidade do livro", sublinha Nádya. De maneira inteligente, os textos apresentam situações que põem em xeque princípios como a ética e a moral, representando bem tanto o Brasil de outrora quanto o de agora. Tudo costurado com o tom satírico do autor, algo caro à sua produção literária - "Triste fim de Policarpo Quaresma" e "Clara dos Anjos", duas de suas principais criações, também bebem desse mesmo tratamento.
Por isso que, para além da obra em destaque, haverá espaço, no encontro, para que olhares sobre a vida de Lima Barreto também entrem em evidência, o que pode explicar muito das escolhas temáticas feitas pelo escritor e de suas maneiras de contar histórias.
Conforme contextualiza Nádya, "não é que os livros dele sejam autobiográficos, mas todos foram muito baseados em situações que ele mesmo viveu. Lima Barreto era negro - chegou a iniciar o curso de Engenharia no Rio de Janeiro, mas pela discriminação que sofria pela sua cor, não continuou - e escrevia utilizando uma linguagem popular, acessível, diferentemente do ideal literário do período. São situações que justificam bastante o porquê de ele ter escolhido certos temas e ter criado tantos personagens memoráveis, muito críticos de sua realidade".
Talvez também essa diferenciação identitária tenha sido a responsável por tê-lo tornado um dos literatos mais injustiçados do Brasil. Ainda que diante de uma vasta e relevante produção escrita, o nome de Lima foi negado duas vezes para integrar a Academia Brasil de Letras. Na terceira tentativa, ele mesmo negou sua entrada na prestigiada entidade.
Amplitude
Indagada se as ideias discutidas na palestra também podem levantar questões que dizem respeito à situação política de outros países, além do Brasil, Nádya argumenta que é muito válido que o encontro realmente promova essa amplitude. É a forma, enfim, que podemos desenvolver nosso senso crítico frente a outras realidades.
"É tão interessante isso de estudar o Lima Barreto porque, também naquela época, ele criticava o culto ao doutor ou 'doutorismo', por exemplo, que era o valor que as pessoas davam apenas a advogados, médicos e engenheiros, como se as outras profissões e classes sociais, as mais baixas, não existissem. A gente observa isso de maneira muito forte ainda hoje e, se conhecemos o termo e o que ele trabalha, podemos ser mais analíticos daquilo ao nosso redor", avalia, rememorando o ensaio "Lima imprescindível Barreto", que escreveu em 2015 abrangendo biografia e bibliografia do autor.
Mais informações
Palestra sobre a obra "Os Bruzundangas", de Lima Barreto. Nesta terça-feira (20), às 9h, no auditório da Academia Cearense de Letras (Rua do Rosário, 1, Centro).
Gratuita.
Contato: (85) 3226-0326

Diário do Nordeste

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