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Uma artista afro-latina esboça um novo quadro da "Criação de Adão" de Michelangelo

Que tipo de imagem de Deus é a pessoa humana, se nos atrevemos a imaginar Deus de forma diferente? Que humanos foram excluídos de se verem à imagem de Deus?
A artista retrata Adam através da raiz da palavra, adamah, que é feminino.
A artista retrata Adam através da raiz da palavra, adamah, que é feminino. (Reprodução)

Por Cecíla González-Andrieu*

O primeiro encontro com a obra "The Creation of God" de Harmonia Rosales foi impressionante. A obra é linda e familiar. Como a "Criação de Adão" de Michelangelo, a pintura de Rosales retrata a criação da humanidade. No entanto, os tons de pele, gênero e história que estão sendo retratados pela artista são surpreendentemente diferentes.
Na pintura de Rosales, Deus é uma avó negra que cria uma humanidade à sua imagem, enquanto belos anjos pretos a cercam. A artista retrata Adam através da raiz da palavra, adamah, que é feminino. Adamah expressa a criatura humana, masculina e feminina, feita de terra. A terra em que o novo humano descansa evoca o “terceiro mundo” nas suas cores e contornos, alguns dos quais ainda permanecem visíveis na carne da mulher.
Como sugere o título, o trabalho esboça a Imago Dei. Que tipo de imagem de Deus é a pessoa humana, se nos atrevemos a imaginar Deus de forma diferente? Que humanos foram excluídos de se verem à imagem de Deus? E quais novas ideias sobre Deus e que relação com ele ganharemos se nos relacionarmos com as formas em que outros expressam sua imagem?
O que revela a considerável angústia e controvérsia em torno da nova pintura de Rosales é que precisamos de novas ferramentas para trabalhar com a arte. A relação muitas vezes contraditória entre arte e religião na modernidade não precisa ser dessa maneira, e uma das primeiras pessoas a abrir mãos e apreciar os artistas foi o papa João Paulo II, que escreveu uma carta pastoral intitulada "Para os Artistas" em 1999. Nela, o papa insiste que "com consideração amorosa, o Artista divino passa para o artista humano uma centelha de sua própria sabedoria, chamando-o a compartilhar seu poder criativo". A pintura de Rosales nos obriga a fazer uma pergunta de dois lados: como vemos o ato criador de Deus? E, como vemos o ato criador desse artista em particular nesta pintura? Arte e fé lidam com os relacionamentos e com o nosso coração, isso os torna muito complicados.
Muitos de nós no mundo ocidental nos acostumamos a encontrar a "arte" apenas em museus e galerias. Muitas vezes, nos referimos a uma obra de arte pelo nome do artista: "etiquetando", por assim dizer, "veja o Warhol!" Isso diminui a própria voz do trabalho. Como os artistas inconformistas mostraram, pensemos em "Readymades" de Marcel Duchamp ou na "Sair pela loja de presentes" de Banksy, apenas chamar algo de "arte" ou adicionar uma assinatura famosa pode "elevar" um objeto, não por seu mérito, mas com base na fama do artista. Quase toda a arte considerou grandiosas as características de rostos europeus brancos, produzidos por homens e para homens. Isso empobrece a história humana, forçando uma interpretação que se concentra em uma perspectiva muito particular e exclui todas as demais.
Essas limitações da arte são preconceitos geralmente aceitos, que tristemente tiram a arte do seu papel vital nas comunidades humanas, incluindo as funções religiosas da arte. "A Criação de Deus", de Harmonia Rosales, enfrenta esses preconceitos e cumpre a função religiosa da arte de criar comunidade, envolvendo nossas histórias fundamentais tão habilmente quanto a primeira versão de Michelangelo feita no século XVI com a histórias da Criação do livro do Gênesis.
Quando encontrei a pintura "Criação de Deus" no Instagram poucos dias depois da sua publicação, já tinha sido vista por milhares de pessoas e gerou centenas de comentários, incluindo alguns negativos em que Rosales foi acusada de apropriação cultural e de manchar o legado do nome de Michelangelo.
Fazer arte é construir um relacionamento, e aceitemos, os relacionamentos são difíceis. Como no início de qualquer bom relacionamento, devemos permitir que a arte fale por si mesma. Isso exige disciplina. Para dar à arte o direito apenas de ser não significa que não façamos perguntas, mas sim que nos tornemos conscientes dessas questões e das ideias que elas produzem. Quando percebo às minhas reações, a arte se abre a mim e, em um ato de reciprocidade, revela muito sobre mim mesma.
Então, tome um momento para olhar a pintura e se perguntar o que está acontecendo em você agora?
Observe o ano de produção: 2017. Observe a localização: Chicago. A arte, que tem sua longevidade, surge das experiências das comunidades, da sua história, das suas alegrias e tristezas. Como você vê esse cenário histórico concreto revelando-se neste trabalho? O que você pode ver agora sobre a vida e a fé de Chicago em 2017 que você não podia ver antes?
Sem contrastar acriticamente o trabalho às intenções ou biografia da artista, percebemos o que ela facilita a partir de um encontro mais completo com a obra. Aqui é importante notar a diferença que a experiência única de cada artista faz para sua interpretação das histórias do Gênesis. O que é revelado quando Michelangelo interpreta o Gênesis como um homem renascentista europeu e Harmonia Rosales como uma latina negra nos Estados Unidos do século XXI?
Prestar atenção às comunidades para quem um trabalho foi feito, sua apreciação ou rejeição, e como isso muda nas comunidades subsequentes ao longo do tempo e lugar é um ato que revela a complexidade da diversidade humana. Nosso amor, rejeição, questões, atos de preservação ou, no sentido religioso, atos de veneração de uma obra de arte nos permitem conhecer aqueles que foram e fazem parte dessa relação que acabamos de colocar. Somos todos semelhantes agora; compartilhamos um amor. E, portanto, não precisamos rejeitar a "Criação de Adão" de Michelangelo para amar a "Criação de Deus" de Rosales, há espaço suficiente em nossos corações para amar as duas. As comunidades que deram origem a eles os encontraram e as encontrarão no futuro em toda sua gloriosa diferença.
Uma relação honesta com a arte pode dar grandes frutos, só precisamos trabalhar arduamente.

America
Tradução: Ramón Lara.

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