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David Linhares : política e poética na Bienal de Dança do Ceará

David Linhares
David Linhares foi bailarino e acrobata. Mas a Bienal Internacional de Dança do Ceará é sua grande obra. Diretor-geral do festival, ele faz há duas décadas as vezes de captador, produtor, curador, articulador do circuito local.
Ajuda assim a dar corpo ao que em 1997 era desejo de bailarinos e coreógrafos de Fortaleza. Fez parte da cena que forjou o Colégio de Dança, o curso técnico, diversas companhias na Capital e no Interior, escolas independentes, a graduação em dança na UFC.
Na entrevista que se segue, ele fala sobre sua trajetória pessoal atravessada pela dança contemporânea. David, que viveu a efervescência cultura de Brasília no final da década de 1970 e a inquietante Paris nos anos 1980, também comenta a censura que mais uma vez ameça as artes no Brasil.
O POVO - Uma obra da artista cearense Simone Barreto acaba de ser censurada na Unifor Plástica. Antes dela, a exposição Queermuseum, em Porto Alegre, foi encerrada antes do prazo previsto e gerou grande polêmica a performance “La bête”, no Mam de São Paulo. Como a Bienal Internacional de Dança contribui contra esse debate conservador?
DAVID LINHARES - Nós temos uma ação que eu acho super importante que é uma oficina com crianças autistas (e profissionais da área artística, da educação e da saúde). A Anamaria Fernandes realizou um filme lindo (Un pas de Côté / Um passo de lado) que trata da relação entre o autismo e a dança. Como tratar com crianças autistas, crianças que se batem num vidro, num espelho, que fazem movimentos repetitivos, que podem se chocar com alguma coisa.. Ela propõe algo que não vai pré-determinar esse movimento. Ela acompanha o movimento dessa criança autista. Movimenta-se junto. Passa por cima do corpo dela. Dialoga com o fluxo dessa criança. De repente, você vê um espetáculo de dança. É uma coisa emocionante, que me tocou muito! Em dois dias de oficina as crianças estão experimentando, vivendo uma nova relação. E o que é mais incrível ainda: o testemunho do corpo médico. Eles falam do quanto é transformador o que eles encontram ali, o quanto era reprimida a relação entre eles e estas crianças. Porque o toque é proibido dentro das instituições de saúde. O que eu queria frisar é a importância da gente criar outros mecanismos, outras relações e não voltar... é um retrocesso. Paris acaba de abrir uma exposição (no prestigiado Museu D’Orsay) que tem como tema “Tragam seus filhos para ver gente nua”. Uma coisa bandeirosa! E aqui no Brasil? Estamos censurando (Cândido) Portinari! Você fica sem palavras. É um absurdo.
O POVO - Eu te perguntei sobre a onda conservadora e você me responde apontando outras questões políticas que está interessado em explorar, afirmar, discutir. Fico pensando o quanto a dança é política. A Bienal é pensada com intenção política?
DAVID - Sempre. Sempre. Sempre. Somos a mira desse conservadorismo. Sobretudo a questão do corpo. Wagner Schwartz (o artista da performance no MAM) estava deitado no chão. A mãe estava ao lado da filha. Havia uma placa sinalizando a interdição de entrada de menores de 18 anos. Nós trazemos um espetáculo pra Bienal da Lia Rodrigues - que é a embaixadora da dança do Brasil no mundo - que vai trabalhar exclusivamente com nu. Não existe um trabalho da Lia Rodrigues que não seja com o corpo nu. Nós vamos proibir a entrada dos menores de 18 anos. Não por causa do nu, isso não me faz medo. O que me preocupa mais é quando o espetáculo exige uma força muito grande, uma violência. Eu não vejo porque uma criança estar presente (neste caso). Mas as pessoas se preocupam é com a nudez. Mães tão conservadoras que vão seminuas à praia. Na praia pode? Durante os dias de Carnaval também? A rede Globo exibe uma mulher nua fazendo propaganda do Carnaval e isso nunca foi discutido. Isso vai acontecer agora em fevereiro e não vai ser questionado. Eles vêm pra cima da arte! Nesses símbolos do Brasil – a nudez, o hedonismo, o culto ao corpo –ninguém vai mexer porque eles mantêm uma estrutura milionária de turismo. Eles mexem numa exposição que tem 40 pessoas assistindo.
O POVO - Você se referiu ao espetáculo da Lia Rodrigues “Aquilo de que somos feitos” que será apresentado na próxima sexta-feira, 27. É um espetáculo que estreou em 2000, já foi apresentado em todas as regiões do País, circulou no exterior, foi premiado. E fico pensando que nesse tempo o Brasil mudou e voltamos a discutir o que já parecia superado.
DAVID - Pedi a Lia que apresentasse mais uma vez este espetáculo como uma resposta para esse momento que estamos vivendo. É uma pena que o público seja restrito, são 150 pessoas. Mas me tocou muito que ela aceitasse essa ousadia.
O POVO - Você falava da força do mercado nesse debate sobre a moral, ditando os limites desse conservadorismo. E a Bienal é mantida por patrocínios. É possível transgredir quando se depende financeiramente de governos e grandes empresas?
DAVID - Há 12 anos fazemos parte de programa da Petrobras. E nunca me questionaram nada. Eu nunca sofri uma imposição. Contar com esse recurso nos dá uma segurança mínima. Vivemos um momento seríssimo. Como é que se pode criar na repressão? Pra onde é que a gente caminha? Então fico sem palavras de pensar que isso possa se agravar ainda mais. Eu já saí uma vez do Brasil pra ir pra França pra fugir disso. Eu fazia dança em Brasília. Tinha 18 anos e trabalha com Hugo Rodas (um uruguaio radicado no Brasil; ator, figurinista e coreógrafo). Estava com pessoas que já começavam a indicar essa possibilidade da dança contemporânea, dessa não dança, dessa dança despida de roupas, de figurino e tudo isso. Saí daqui num momento de repressão. Aí eu volto depois dos 1990 e parecia que tudo tinha se transformado. Um país lindo. Essa coisa do Brasil não ter memória é uma coisa que também pode ser boa, para esquecer as coisas terríveis que passamos. O povo se reinventa.
O POVO - Queria que você revisitasse os momentos mais marcantes da Bienal.
DAVID - Acho que a primeira Bienal de Par em Par. Foi um grande momento. Um marco. A gente vai falar de transversalidade. A gente se abre para o diálogo com outras artes – vídeo, cinema, música. Hoje, a música é muito presente na Bienal. Temos as Fringes (programação musical). O que nós vivemos, o que nós crescemos... construímos juntos. Os músicos, a Vila das Artes, o Alpendre - o Ceará chegou a ser o maior produtor de videodança do País. É sempre importante ser instigante. É importante essa coisa de causar estranhamento. Acho que o papel da Bienal está aí. No início, a gente estava ali pra dizer ‘apostamos no contemporâneo’. Mas, de repente, percebi que os grandes balés não circulavam mais. Quando a gente trouxe o Balé Guaíra (de Curitiba) com “A Sagração da Primavera” pro Theatro José de Alencar (em 2012), abrindo a Bienal, as pessoas me perguntavam: ‘ você vai trazer o Balé Guaíra?!” Vou. Porque eles não têm mais espaço. Os formatos eram todos de duos, trios, quatuors e nunca grandes companhias. Optamos por isso. Os grandes balés são as grandes escolas brasileiras. É dali que surgem os grandes coreógrafos brasileiros como Jorge Garcia. Rachid Ouramdane (franco-argelino) está coreografando por Balé de Lion! São coreógrafos ‘marginalizados’ por essa dita dança contemporânea. Lembro que quando começamos as pessoas sempre se perguntavam, na saída dos espetáculos, ‘mas isso é dança?’ O interessante é que não saiam dali sem ser tocadas. Muita gente chegava pra me dizer que sempre via nessas apresentações uma relação com sua própria vida. As pessoas me relatavam isso e esse é um sentimento que eu também tenho, daí minha paixão pela dança contemporânea. Naquele escuro, quando a luz apaga, na penumbra, começo a entrar numa atmosfera...
O POVO - Não tem uma narrativa que te conduz.
DAVID - Exatamente. A dança contemporânea traz pra gente não só essa coisa estética do movimento, da beleza da dança. Ela traz essa coisa do pensamento, de resgatar emoções, sensações que estavam ali talvez adormecidas há muito tempo. Por exemplo, um trabalho do (francês) Alain Buffard, Les Inconsolés, tem uma atmosfera que me leva ao guarda-roupa que nós, meninos, entrávamos, o cheiro dos vestidos da minha mãe, dos paletós do meu pai...

OPOVO - Você já foi bailarino. Como descobriu a dança?
DAVID - Eu estava com 16 anos. Fugindo da repressão no Ceará, meu pai (o educador Edgar Linhares) recebeu um convite do Ministério da Educação em Brasília e morávamos todos lá. Eu vi no jornal uma chamada pública para uma escola de teatro e dança da Graciela Figueroa (uruguaia e uma das pioneiras da dança contemporânea no Brasil) com Ademar Dorneles. Ele era um coreógrafo que havia saído do Ballet Stagium, da Marika Gidali e do Décio Otero, e tinha decidido utilizar as formas, as construções, a arquitetura de Brasília pra criar uma companhia que se chamava Asas e Eixos. Fui ver e passei nessa audição. Minha mãe me proibia e meu pai ficou enlouquecido comigo. Era um grande momento. Foi aí que nasceu também em Brasília o Concerto Cabeças (apresentações idealizadas pelo ator Neio Lúcio que no final da década de 1970 uniam teatro, dança, poesia, música e artes visuais). E tinha a presença de um uruguaio louco, Hugo Rodas, que trabalhava muito com a nudez. Lembro da gente invadindo o Teatro Nacional em Brasília, ocupando esse espaço que é lindo e que está abandonado. Fizemos um espetáculo. A Marika e o Décio vieram ver e me convidaram para uma audição no Stagium, em São Paulo. Eu nunca tinha nem calçado uma sapatilha e estava no meio de profissionais, gente que queria ganhar dinheiro com a dança, que brigava pra estar ali. Soube que antes chegaram a colocar gilete dentro da sapatilha de um bailarino pra tirá-lo. Coisas absurdas. Era a única companhia que fazia boom no Brasil. Na minha frente, entrou um argentino que de tão excitado, querendo aparecer diante daquela banca, pulou e desceu num grand écart, se machucando. Ele saiu de ambulância. Aquilo ali me assustou. Comecei a entender que talvez eu tivesse feito uma má escolha.
O POVO - Por que você desistiu de ser bailarino?
DAVID - Esse corpo que eu imaginava que podia dançar, fluir de emoções não existia. Voltei pra Brasília e entrei para um grupo de acrobacia, de teatro, do Ary Pára Raios que nessa época trabalhava com o (poeta Paulo) Leminski. Fomos pra Curitiba e lá a gente fazia uma guerrilha de sorrisos fazendo acrobacias nas grandes marechais (o cruzamento das avenidas Marechal Deodoro e Marechal Floriano Peixoto, no Centro da capital paranaense). Enquanto os sinais estavam fechados subíamos nos ônibus, fazíamos mil acrobacias... Até que eu caí de cima de quatro pessoas. Fui parar no hospital como indigente e fiquei quase um mês sem poder sair de Curitiba. Volto pra Brasília e sou convidado pelo Hugo Rodas com quem eu sonhava muito trabalhar. Mas o ensaio era uma coisa bem burguesa, no Lago Sul. Eu estava me sentindo cada vez mais mal, não achava meu lugar, não me achava. Ele chegou pra mim e disse: ‘”Quando a gente não quer ser melhor que nosso coreógrafo, a gente está no lugar errado”. Eu fui embora. Estava quase com 18 anos e saía muito, bebia muito. Num desespero, meu pai me dá uma passagem para ir a França. Era o refúgio da minha geração.
O POVO - Você cita seu pai Edgar Linhares, que militou por um ensino mais livre, de mais respeito com o limite da aprendizagem de cada um. De que forma ele influencia sua formação?
DAVID - Em tudo.
O POVO - Mesmo ele não te apoiando na dança?
DAVID - Meu pai não era contra. Era uma forma dele nos defender. Ele achava que podia ousar, mas como pai ele tinha que nos proteger. Foi mais um momento de desespero dele de ver que eu não tinha mais perspectiva e não tinha mais condições de ficar em Brasília, que nesse momento aumentava a cada dia a repressão. Um dia eu estava com a minha mãe dentro do carro e a polícia nos parou. Colocaram, ao lado da quadra onde a gente morava, minha mãe encostada num carro como um bandido. Ele chega e nos encontra naquela situação. Foi quando ele me perguntou pra onde eu queria ir.
O POVO - Queria que você descrevesse a Paris que encontrou.
DAVID - Eu cheguei para cuidar de umas crianças e me sentia super bem nessa relação. Foram 3 crianças que eu cuidei durante 4 anos e meio. Antes, no Brasil, eu havia passado um momento complicado, o contexto, a cirurgia no meu braço, a falta de comunicação com minha família em Curitiba.... Aí chego em Paris, um lugar livre, Miterran (o socialista François Mitterrand eleito presidente em 1981), as flores, a dança contemporânea. Eu ia ao teatro e aquelas novas possibilidades meu enlouqueciam. Senti muita coragem, muita vontade de fazer algo pela dança no Brasil. E embora eu tivesse saído do Ceará há muito tempo, eu não pensava em Brasília. Meu retorno era pra cá. Então eu volto pro Ceará e entro na Aliança Francesa. Encontrei no Brasil uma grande festa, um momento que me abraçou e eu não quis mais ir embora.
O POVO - A Bienal já trouxe companhias de países africanos, da América do Sul. Mas tem, sobretudo, um forte sotaque francês. Li recentemente uma entrevista sua e achei interessante você afirmar que essa relação com grupos de fora nunca foi colonialista, que o convite sempre foi de troca. Como isso é estimulado?
DAVID - Pra mim esse é o grande papel de um festival. Sobretudo, o encontro. E a Bienal difere de tudo que eu vejo. O momento do espetáculo não é o mais importante. É o bate-papo depois, são as Fringes, as paixões... Sempre que eu contratei uma companhia fiz o convite de que estabelecermos vínculos, trabalharmos juntos. Nós atingimos um público que é inédito no Brasil. Entre 30 e 40 mil pessoas por edição. Eu não conheço nenhum festival que atinja o número de cidades do interior como nós. Não é levantando a minha bola de jeito nenhum, longe daí - mas veja o que acontece hoje no Vale do Curu, Trairi, Itapipoca, o trabalho com os quilombos do Gerson (Moreno, da Cia Balé Baião), o Flávio Sampaio se reencontrando com a vida dele, com as referências dele. Aquele monte de menino dirigindo companhias, cuidando da Paracuru Cia. De Dança. Me emociona reunir 3 mil pessoas na praça de Paracuru pra ver dança.
O POVO - Qual era a cena da dança em Fortaleza em 1997, quando a Bienal surgiu?
DAVID - O festival foi construído por muitos, pelo Ernesto Gadelha, pela Cláudia Pires, pelo Flávio Sampaio... O Colégio de Dança surge ali, naquele momento. Foi criado também o primeiro Fórum de Dança com a Janne Ruth, a Goretti Quintela, a Mônica Luiza, com as academias. Gosto muito dessas pessoas e tenho o maior respeito pelo trabalho delas. A Madiana (Romcy), a Dora (Andrade), Anália Timbó. Batalhei para que construíssemos isso tudo juntos. Juntos, começamos a pensar o formato do Colégio de Dança que já nasceu moderníssimo, contemporâneo. Era vinda do Flávio, a Andrea Bardawil e o Andanças. A companha montou Capitães de Areia e nós trouxemos o Jorge Amado, ele assistiu a estréia. A Bienal surge de um desejo muito forte, que eu acho que é lindo. E era o desejo de muitos.
O POVO - Hoje 40% das companhias que se apresentam na Bienal são do Ceará. Há pólos de dança no interior do Estado. Temos uma graduação em dança. O curso atraiu nomes nacionais que pensam a dança a partir daqui. Há um curso técnico. É um cenário diferente do de 20 anos atrás. Qual o papel que a Bienal assume nesse novo contexto?
DAVID - Seria importante que os governos fomentassem a criação e a formação, mantendo essas escolas. A Bienal ainda tem que assumir em parte esse papel.
PROGRAMAÇÃO
EM CURSO. A 11ª EDIÇÃO DA BIENAL INTERNACIONAL DE DANÇA DO CEARÁ TEVE INÍCIO NA ÚLTIMA SEXTA-FEIRA, 20, E SEGUE ATÉ O PRÓXIMO DIA 29 DE OUTUBRO.
EMOÇÃO
MAIS ESCOLAS. DAVID SE EMOCIONOU AO FALAR DA IMPORTÂNCIA DO ENSINO PÚBLICO DA DANÇA E LEMBRAR DA MILITÂNCIA DE SEU PAI PELA EDUCAÇÃO
INTERIOR
PROGRAMAÇÃO. ESTE ANO, A BIENAL ACONTECE EM FORTALEZA E OUTRAS SEIS CIDADES CEARENSES - SOBRAL, PARACURU, TRAIRI, AQUIRAZ, JUAZEIRO DO NORTE E ITAPIPOCA.
PERFIL
David Bessa Linhares nasceu em Fortaleza e tem 56 anos. É filho do educador Edgar Linhares, falecido em 2015, e Maria Ivolete Bessa. Morando em Brasília, na adolescência, foi bailarino e acrobata. Também morou em Paris, onde se formou em Linguística, pela Sorbonne Paris VIII, e fez mestrado em Fonética Experimental. De volta ao Ceará, na década de 1990, trabalhou como produtor cultural da Aliança Francesa. Organizou e dirigiu a primeira edição da Bienal de Dança do Ceará em 1997. O evento acontece há 20 anos de forma ininterrupta.
PERGUNTA DA LEITORA
Wilemara Barros, bailarina da Cia. Dita
Wilemara - A Bienal foi um divisor de águas pra dança no Ceará. Sendo assim, como você pensa que ela será no futuro, daqui a 20 anos?
David - Eu imagino que nós estaremos mais estruturados. Espero! Que a gente possa contar com patrocínios mais antecipados pra trabalhar com segurança. Espero que a gente consiga trazer companhias da África, da América do Sul, da América Central para mostrar outras vertentes, outras possibilidades de dança, que não trazemos muitas vezes por falta de apoio. Temos que estreitar mais estas relações.

SILVIA BESSA
O Povo

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