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Livros do medo: três histórias brasileiras de horror

Por Samir Machado de Machado
Escritor, designer gráfico e roteirista. Autor de "Homens Elegantes" (2016)
Alina é uma jovem urbana, doutoranda em religião comparada, cuja racionalidade se manifesta através de um ceticismo sarcástico beirando a arrogância. Quando uma delegada pede sua opinião sobre um caso envolvendo um culto, voltam-lhe lembranças de sombras em sonhos que via desde pequena. Ao longo de um dia e uma noite, movida pela curiosidade e em desafio ao próprio ceticismo, ela se envolve cada vez mais com esse culto.
As Perguntas (Companhia das Letras, 2017, 184 páginas, R$ 25,90), novo romance de Antônio Xerxenesky, é em essência uma história de horror, no seu sentido mais psicológico. Alina experimenta uma lenta distorção da realidade que pode (ou não) ser fruto de paranoia, uma incerteza obscura alimentada pela sensação de ser seguida por uma sombra que talvez só ela veja. 
A certa altura, afirma: "Nunca deixei de dividir os artistas em duas categorias: os da memória e os da imaginação", e, enquanto declara preferir os primeiros, sua história a conduz para o segundo tipo. É nesse contraste que ela se divide, como se uma personagem de um romance realista de autoficção de repente percebesse que foi parar num romance de horror sobrenatural.
"Viramos adultos quando pessoas da nossa idade morrem de forma absolutamente estúpida e podemos contemplar, com a lucidez necessária, a fragilidade e o absurdo da vida", diz ela. Mas se as religiões existem para mediar nossa relação com a morte, como o sarcasmo niilista de uma millenial sobrevive, quando sua racionalidade é assaltada pelo medo sobrenatural?
E que tipo de medo ocupará esse lugar, se houver somente o vazio? As perguntas do título talvez não tenham resposta, e talvez nem devessem. Mas é nessa soma de opostos – dia e noite, luz e sombra, realidade e imaginação – que Xerxenesky cria o retrato espiritual de uma geração em crise ao atravessar tempos sombrios.
Já em Neve Negra (Companhia das Letras, 2017, 248 páginas, R$ 26,90), de Santiago Nazarian, Bruno é um artista plástico de meia-idade cujo sucesso o faz comparável a Romero Britto, mas também o mantém afastado da mulher e do filho. Ao voltar de viagem para casa, na cidade mais fria de Santa Catarina, sente um estranhamento inexplicável – a cadela está arredia, o filho urinou na cama, a mulher não sai do quarto. Soma-se a isso um vizinho, que fala de uma entidade sobrenatural, o "Trevoso" que sai da mata na noite mais fria do ano "para matar o velho e ocupar o lugar do novo". Ao explorar paternidade e paranoia, insatisfação profissional e conflitos geracionais, Nazarian traça o quadro psicológico de outra geração, uma que já não se sente mais em casa e já não se reconhece no mundo que criou para si.
Escritas sob encomenda para uma coleção de horror da Companhia das Letras, é curioso como, a seu modo, ambas as obras traçam quadros complementares de um momento muito particular. Se Xerxenesky cria um terror de alienação urbana que remete a Dario Argento e Polansky, Nazarian evoca e atualiza o desconforto familiar e o isolamento da casa mal-assombrada, com elementos que vão de O Iluminado a Psicose. Em ambos, a insatisfação de seus personagens com a vida que construíram os leva a enfrentar a possibilidade do sobrenatural.
Um terceiro livro se soma a esse recente ressurgimento do terror: Jantar Secreto (Companhia das Letras, 2016, 376 páginas, R$ 24,90), de Raphael Montes. Lançado no final do ano passado, aborda um grupo de jovens cariocas sem dinheiro e desiludidos com a vida urbana. Para enfrentar a crise, criam elegantes e exclusivos jantares para alta sociedade onde o prato é carne humana, tomada de pessoas "invisíveis" ou "indesejáveis" na sociedade.
Com banhos de sangue dignos de Sweeney Todd e referências ao filme clássico Soylent Green, Montes cria tanto uma paródia da gourmetização da sociedade quanto uma crítica à alienação da elite brasileira – que, em tempos de farinata, se tornou mais caricata na vida real do que na ficção.
Em comum, os três livros trazem um frescor novo, um sinal de que, nestes tempos cada vez mais surreais, a literatura realista atinge seus limites, e cabe à literatura de imaginação buscar um modo de interpretarmos e dar sentido a essa época estranha em que vivemos.
Zero Hora

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