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Livro fala sobre empatia, alteridade, sentimentos reais e seres humanos

por Carol Kossling - Repórter
O conceito de perceber e ver a criança como sujeito ainda é muito novo. Assim como o conceito de moda, que veio com o mundo moderno, muito depois da criação do vestuário.
Por isso há a necessidade latente de abordar temas como identidade, empoderamento e moda na infância diretamente com as crianças.
E de forma mágica e sensível, a linguista e escritora Tânia Dourado conseguiu reunir todos estes assuntos, e alguns outros, com maestria no livro "Um vestido para Tutti", que foi previamente lançado na XII Bienal Internacional do Livro do Ceará.
Para termos uma breve ideia da importância do que estamos falando, vale um pulinho no passado. Nas obras do brilhante William Shakespeare, por exemplo, apenas os adultos tinham voz. E somente no século XIX, no livro "Oliver Twist", de Charles Dickens, uma criança protagonizou um romance inglês.
Com muita emoção, Tânia diz que "Um vestido para Tutti" é um projeto que já nasceu grande, atravessando algumas fronteiras.
"A primeira delas é falar de moda, identidade, sentimento de pertença num contexto de miséria e abandono absoluto. Tutti nos mostra a capacidade que temos de afetar a vida do outro e também a importância de sermos afetado pela realidade do outro. As meninas do Malawi são uma metáfora das tantas Tuttis que trafegam no mundo invisíveis aos olhos de muitos", explica a autora cearense.
Sonhos
Na história do livro, a protagonista Tutti é uma menina de apenas sete anos que vive no Malawi, na África, e já é chefe de família e cuida de dois irmãos menores.
A menina é invisível aos olhos dos demais e vive em condições precárias. Sente tanta fome que a barriga chega a doer. O que resta a ela? Sonhar! Sonhar que 'pessoas grandes' cuidem dela, uma boa vida e um vestido para usar. Um dia este sonho se torna realidade.
A autora conta que a história das meninas do Malawi chegou a seu conhecimentono no final do seu doutorado em linguística.
"Enquanto escrevia minha tese sobre comunicação de moda e analisava o discurso das campanhas de marcas de luxo, meninas do outro lado do mundo não tinham um vestido sequer. Eu falava de moda e identidade na hipermodernidade e aquelas meninas não tinham nada que as singularizasse, nada que as tornassem diferentes umas das outras", sensibilizou-se.
Inspiração
O leitmotiv do livro nasceu de uma matéria que Tânia assistiu na internet sobre a americana Lillian Weber, que aos 94 anos decidiu confe ccionar um vestido por dia para as meninas do Malawi. Ao morrer, Lillian já havia confeccionado mil vestidos, cada um diferente do outro.
Tânia então pensou: "um vestido diferente do outro. Aquilo era identidade e lá não tinha nada que as singularizasse". Nesta noite mesmo, ao invés de continuar sua tese, escreveu um novo livro.
O nome da personagem-título, no entanto, é uma homenagem da autora a sua filha Tutti que morreu em 2001, ainda na maternidade, antes de ganhar a boneca negra que ela havia comprado para a bebê.
Identidade
Tânia Dourado defende que a moda pode, e deve, ser trabalhada com as crianças de forma positiva, que traga identidade. "A moda é parte da construção da identidade dela. E o adulto tem que deixar que ela escolha o que vestir. Quando o adulto impõe o que a criança vai vestir ele apaga a identidade dela", ressalta. Isso é válido, segundo ela, mesmo que as escolhas não sejam convencionais e do gosto dos pais.
Liberdade
"As crianças têm que ter esta liberdade de errar e acertar. Como linguista não existe erro e, sim, abordagem. Posso me construir como alguém mais diverso, mais complexo e mais interessante. E a moda tem um papel importantíssimo como nossa construção como sujeito", complementa.
Outro ponto que destaca é a não construção das crianças como arremedos de adultos, pois é necessário dar o tempo a ela de ter a própria descoberta do corpo. Acredita, ainda, que vestir é uma brincadeira tanto para meninos, quanto para as meninas. "A moda é um jogo de linguagens", diz.
Nesse âmbito Tânia vai lançar em breve um novo título "Como ser menina num mundo sem o rosa". Na história quer retratar a necessidade de as meninas se relacionarem com as demais cores e não criarem sua identidade a partir do rosa somente.
Estereótipos
O livro também traz algumas mensagens sobre preconceitos e estereótipos por tratar de aceitação, identidade e do único e singular.
Tânia defende que o preconceito vem dos adultos e é passado para as crianças, que passam para as outras crianças e assim vai de geração em geração. "Existem muitas palavras e elas vêm de toda parte e algumas podem magoar pessoas. Já existem outras palavras malvadas que servem para ferir mesmo", elucida a linguista.
Para ela, algumas palavras carregam um ódio tão profundo que criam marcas e roubam do outro a ternura e a coragem. "Uma palavra assim sabe bem do que é capaz. Nós chegamos ao mundo sem preconceitos. Eles são plantados e cultivados pelos adultos nas crianças. E este estereótipo vem junto com o preconceito. É ele que sustenta o preconceito e generaliza todo mundo. Ele coloca junto o que deve ser separado e separa o que tem que estar junto", aponta.
Para ela, o estereótipo é cruel e emburrecedor, ele aprisiona numa história única. Enquadrando o indivíduo num modelo que justifica e embasa o preconceito. A criança aprende com os adultos e o preconceito é cultural. "Se ele viver com as diferença em casa e na sala de aula elas vão passar batido".
Educação
Como linguista e escritora avalia que pode colocar luz nos discursos que, sustentados por estereótipos, naturalizam a exclusão e estimulam o preconceito. "O estereótipo é uma forma presa, fixa, que nega o jogo da diferença", afirma a autora.
Dourado tem consciência de que não pode mudar o mundo, mas sua literatura está levando para dentro das salas de aula discussões importantes como respeito à diferença, construção de identidades, empoderamento feminino, preconceito linguístico.
Ilustrações
Para contextualizar todo este cenário de assuntos fortes e relevantes um contraponto, o olhar doce, suave e gentil do artista Luis de Almeida.
Tudo começou de um encontro casual e que terminou num casamento profissional. "Conheço vários ilustradores, mas queria que a escolha fosse espiritual. Luis nunca tinha ilustrado um livro, só desenhava. O encontrei numa feira cultural e ele estava fazendo uns colares de cerâmica", relembra Dourado contando detalhes da forma como ele expõe seus produtos e escreveu seu nome.
"Isso me chamou a atenção e ali, naquele momento, eu olhava e nada tinha para mim que era ele, mas ao mesmo tempo tinha tudo. Então perguntei se ele poderia ilustrar um livro. Contei a história e ele se emocionou e disse que faria tudo. Sentamos e pensamos em cada ilustração", diz.
Para a composição da obra infantil foram utilizados tecidos estampados, e muitos bordados florais.
"Entrei neste projeto com o bonde andando. Não só o bonde, como o coração e a emoção também. Tem sido uma aventura intensa. A responsabilidade e a confiança para tocar um projeto tão lindo só me instigou a dar o melhor de mim. E não por mim, mas para o mundo de pessoas que essa história pode tocar, pelo poder transformador que acredito estar aqui escrito", sensibiliza-se Almeida.
Reflexão
Para a autora, a literatura tem a capacidade de nos colocar na história do outro, provocar em nossa alma o sentimento de alteridade.
"Esse conceito fundamental, revolucionário, que nos permite vestir os sonhos de muitas Tuttis e construir um mundo que inclua a todos", reflete Tutti.
Assim com essa Tutti da história de Tânia Dourado, existem outras milhares de meninas nas mesmas condições em todo o mundo e ao nosso lado. Basta um pouco de atenção e cuidado que todos nós podemos contar novas e lindas histórias.
Sobre a autora

Tânia Dourado

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Tânia Dourado, além de escritora, é linguista (Foto: Rafa Eleutério)

Doutora em Linguística, Tânia já atuou nas mais diferentes áreas de comunicação, como professora universitária, roteirista, apresentadora de programas culturais. Por meio de sua obra, Tânia está levando o tema da inclusão para dentro das escolas, ampliando o alcance de um discurso literário que favorece uma cultura de inclusão e respeito às diferenças.
Um vestido para Tutti

Diário do Nordeste

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