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Autores dedicados ao afrofuturismo ganham destaque no País

por Maurício Meireles - Folhapress
Wakanda, o país mítico de onde vem o Pantera Negra, projeta uma realidade imaginária: uma África nunca tocada pela escravidão e jamais colonizada. Nessa projeção, Wakanda é um cenário futurista, com carros que voam e um trem supersônico - mas que se disfarça dos olhos das potências ocidentais como um país subdesenvolvido.
Essa África imaginada no filme, maior bilheteria do ano até aqui, já arrecadou mais de US$ 1 bilhão (R$ 3,3 bilhões) em cinemas de todo o mundo.
"Pantera Negra" é parte de um ramo da narrativa fantástica que existe há bastante tempo, mas que ganhou fôlego no mercado de livros no último ano - e recebe um empurrão extra com o filme.
O fenômeno cresce em duas frentes que correm paralelas. Uma é a ficção científica que mistura tecnologia e ancestralidade - estética batizada, já nos anos 1990, de afrofuturismo, também adotada em outras artes. Outra é a fantasia clássica, à moda de "O Senhor dos Anéis", mas que, em vez de buscar os mitos europeus, se inspira na mitologia dos povos africanos.
No mercado de livros internacional e brasileiro, começam a circular títulos do tipo. A Rocco comprou os direitos de "Children of Blood and Bone" (filhos de sangue e osso), de Tomi Adeyemi, nigeriano-americana há cinco semanas entre os mais vendidos do jornal The New York Times.
Depois de se formar em literatura inglesa na Universidade Harvard, a autora ganhou uma bolsa para estudar a mitologia dos países da África ocidental - em Salvador, na Bahia.
O romance se passa no reino mágico de Orïsha, onde os habitantes perdem os poderes e são assassinados por um rei cruel. E a protagonista precisa recuperar seus dons.
Títulos
No ramo da ficção científica, o Brasil terá, pouco a pouco, pela editora Morro Branco, a obra de Octavia E. Butler (1947-2006) - que discutia temas raciais em sua obra e se tornou uma espécie de papisa do afrofuturismo, mas começou a publicar antes mesmo de o termo ser adotado.
No ano passado, a editora lançou "Kindred" (1979), sobre uma mulher que faz viagens no tempo até a época da escravidão nos Estados Unidos e precisa salvar o filho de um senhor. O livro é hoje o best-seller da editora, com 6.000 exemplares vendidos.
A Morro Branco também publicou o primeiro volume da trilogia "Broken Earth", assinada por N. K. Jemisin - cujos dois primeiros volumes levaram o Hugo Awards, principal prêmio de literatura de fantasia, e já venderam mais de 400 mil cópias em inglês.
Um outro nome se firmou como fenômeno no exterior e não tarda a chegar ao País. Nnedi Okorafor, americana de ascendência nigeriana, é tratada como uma renovadora do gênero fantástico - e já colheu elogios de Neil Gaiman.
Ela transita entre os dois ramos, o afrofuturismo e a fantasia medieval. A Record acaba de adquirir os direitos de duas trilogias: a série "Binti", sobre uma personagem que é aceita em uma universidade intergaláctica; e a da "Akata Witch", com uma protagonista que descobre ter poderes.
Outro romance seu, "Quem Teme a Morte" (Geração Editorial), foi comprado pela HBO e vai virar uma série produzida por George R. R. Martin, o autor dos livros que inspiraram "Game of Thrones".
"Fiquei meio obcecada quando saí da Flip no ano passado (edição com mais negros de todas as Flips). Saí pensando que algo estava começando e viria com muita força", diz Ana Lima, editora do selo Galera Record.
"'Pantera Negra' não inventou , é uma consequência. Mas ele o ratifica e mostra como a coisa é forte, para quem estava em dúvida".
Em alta
Quem acha fantasia um gênero menor que durma com esta: o jamaicano Marlon James, ganhador do Man Booker Prize em 2015, com o ambicioso "Breve História de Sete Assassinatos" (Intrínseca), começa a publicar neste ano a trilogia "Dark Star".
"Ficção científica, policiais e fantasia são meus primeiros amores. Quero escrever um romance que um geek escreveria", disse ele em entrevista à Folha no ano passado. "Meu romance será sobre a realidade, mas aos olhos da fantasia".
A editora Rosana Morais Weg, diretora da Kapulana, casa especializada em autores negros - e que costuma fazer prospecção de títulos em países africanos -, diz ter percebido uma mudança considerável nos últimos anos.
"Antes trabalhávamos com a literatura africana mais clássica. No último ano, fomos atrás de outras coisas e percebemos uma produção contemporânea muito forte no Zimbábue e no Quênia, mas principalmente na Nigéria", diz.
"Há autores saindo um pouco do realismo mágico e partindo para algo mais futurista", completa ela.
No Brasil, embora não haja ainda a mesma proliferação de títulos do exterior, também há quem se dedique a esse imaginário. É o caso do carioca Fábio Kabral, que publicou no ano passado "O Caçador Cibernético da Rua 13" (Malê).
Kabral, iniciado no candomblé, conta a história de João Arolê, um caçador de espíritos malignos - misturando ficção científica e mitologia iorubá. "A proposta do afrofuturismo é resgatar, trazer humanidade para as pessoas de pele preta", afirma.
A fantasia não é estranha aos autores africanos. Basta lembrar como dois nomes conhecidos no Brasil, o moçambicano Mia Couto e o angolano José Eduardo Agualusa, são influenciados pelo realismo fantástico latino-americano.
A diferença, agora, é a descoberta da fantasia inspirada na África pelos conglomerados internacionais do livro - sobretudo na literatura mais comercial.
Dentro das obras com perfil de best-seller, a quantidade de títulos também faz pensar no segmento infantojuvenil, que há alguns anos não tem vampiros, anjos ou outra tendência arrasa-quarteirão.
Um novo filão dá sinais de se revelar, e as editoras perceberam. Agora é esperar a resposta dos leitores.

Diario do Nordeste

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