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Dois livros de Alejandra Pizarnik, sombria e genial poeta argentina, quebram seu ineditismo no Brasil

por Dellano Rios - Editor de área
As hagiografias, narrativas de vida dos santos, dão uma importante lição sobre a forma com que contamos histórias. Conhecer o fim - e a morte é o fim por excelência - ajuda a reescrever todo o resto, como se cada episódio prenunciasse o desfecho. Destes homens e mulheres iluminados, procura-se sempre os sinais de santidade.
Alejandra Pizarnik não foi santa, mas sua morte garantiu um tipo de canonização. Vem de longe a predileção, no mundo das artes, por existências trágicas. A da poeta argentina, certamente, pode ser vista assim. Pizarnik morreu em 1972, após ingerir, de propósito, 50 comprimidos de um sedativo. Tinha 36 anos e uma bibliografia que já contava 12 títulos, a maior parte de poemas, mas com incursões pela prosa e pelo teatro.
As circunstâncias de sua morte, em meio a um tratamento psiquiátrico, por conta de recorrentes mergulhos na depressão, imprimiram sombras em seus poemas. A qualidade de sua obra, aliado ao fascínio pelos suicidas literatos, fez crescer um culto. Não poucas vezes, iniciados e iniciantes passaram a ler seus versos como se vivesse um romance policial; entre uma palavra e outra, no salto entre linhas, buscavam pistas para desvendar sua morte, como se cada poema fosse bilhete de despedida cifrado.
Dois livros da autora - "Árvore de Diana" (1962) e "Os trabalhos e as noites" (1965) - acabaram de chegar às livrarias, com tradução de Davis Diniz. São os primeiros, de poemas, da autora lançados no País em edição comercial, pela Editora Relicário. A Alejandra Pizarnik que emerge da leitura destes poemas não é a figura unidimensional, trágica, que ruma sem desvios para sua morte.
Fazer poético
"Durante um bom tempo, a tônica com que a crítica acabou lendo a obra de Pizarnik foi essa, da figura que pouco se encaixava socialmente", explica Davis Diniz, doutor em teoria literária e tradutor dos dois livros lançados pela Relicário. Em seu trabalho, o tradutor buscou uma visão mais complexa, sem reducionismo.
Um olhar possível é o de uma poeta que imprimia em seus poemas uma reflexão sobre o próprio fazer poético. Demasiado consciente de seu ofício, Pizarnik não envereda pela metalinguagem explícita, como no poema 28 de "Árvore de Diana": "te afastas dos nomes/ que fiam o silêncio das coisas" ("te alejas de los nombres/ que hilan el silencio de las cosas" ).
Esta abordagem tem a ver com uma mudança na forma como a crítica lê Pizarnik. Mudança, explica Diniz, que vem com um livro do escritor e ensaísta argentino Cesar Aira. Publicado há duas décadas, "Alejandra Pizarnik" questionava a redução psicanalítica da crítica em relação à obra da poeta. "Aira alertava que era importante não ler a obra pela biografia. Houve momentos em que acabou predominando, entre os críticos, a ideia de reduzir Pizarnik aos lugares comuns, do suicídio, da loucura, da figura que não se encaixava socialmente".
De fato, a obra de Pizarnik é repleta de imagens sombrias. A atmosfera dos poemas é onírica, o que faz a autora ser comparada, frequentemente, aos surrealistas. Mas, de fato, a semelhança parece ser resultado menos de uma influência direta do que da partilha de referências em comum. É o caso de poetas "malditos" como o Conde de Lautréamont (1846-1870) e Arthur Rimbaud (1854 - 1891).
Aliás, é impossível não pensar em Rimbaud e seu verso "Eu é um outro" ("Je est un autre"). A poesia de Pizarnik se assemelha a um jogo combinatório, de palavras (espelho, alba, sombra, cinzas,...) e ideias. Uma delas é do duplo, com a autora expressando uma cisão de si mesma. Em "Silêncios", poema de "Os trabalhos e as noites", ela diz: "A morte sempre ao lado./ Escuto seu dizer./ Só me ouço" ("La muerte siempre ao lado./ Escucho su decir./ Sólo me oigo").
Descompasso
Davis Diniz é autor de uma pesquisa que articula os campos literários argentino e brasileiro. Ele trabalhou na Relicário no projeto de edição de Pizarnik que, após idas e vindas, conseguiu apoio do programa SUR, do governo argentino, que incentiva traduções de obras literárias do país em outros idiomas. Com a editora Maíra Nassif Passos, chegaram a "Árvore de Diana" e "Os trabalhos e as noites" - dois trabalhos centrais em sua produção poética, marcos de uma virada e da instituição de uma dicção poética que a marcaria a partir de então.
Os livros saem em edições bem cuidadas, bilíngues, com textos introdutórios das poetas Ana Martins Marques e Marília Garcia e um posfácio do tradutor. Pelo site www.Relicarioedicoes.Com, a editora comercializa um box ilustrado por um desenho de Pizarnik, reunindo os dois volumes.

Livros

Os trabalhos e as noites
Alejandra Pizarnik

Tradução e posfácio: Davis Diniz
Relicário
2018, 132 páginas
R$ 39,90

Árvore de Diana
Alejandra Pizarnik

Tradução e posfácio: Davis Diniz
Relicário
2018, 108 páginas
R$ 39,90


Diário do Nordeste

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