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Publicado pela Venetta, "Todos os Santos" traça um panorama da produção de genial Marcello Quintanilha

por Guilherme Sobota - Agência estado
Marcello Quintanilha tinha só 16 anos quando decidiu tomar um ônibus em Niterói em direção ao Rio. Numa pasta, alguns desenhos que ele fazia em casa, depois da escola: o destino era a editora Bloch, que publicava a Manchete, mas também vários títulos de quadrinhos. Ao mostrar o portfólio para o editor responsável, Quintanilha recebeu na mesma hora um roteiro para começar a trabalhar.
Era o início de uma carreira vigorosa que ganha uma revisão (mas não só) com a publicação agora de "Todos os Santos", álbum que reúne desde páginas desses primeiros trabalhos na Bloch até algumas de suas produções mais recentes, entre diversas histórias inéditas. Além das tiras que ele publicou no jornal O Estado de S. Paulo, em 2010.
Nuances
"A vontade de desenhar sempre existiu", diz Quintanilha numa entrevista em São Paulo nesta semana - o autor está vivendo entre Barcelona e Paris, com visitas frequentes ao Brasil; ele veio agora divulgar o lançamento de "Tungstênio". O filme, baseado na HQ homônima, foi roteirzado pelo quadrinhista ao lado dos escritores Marçal Aquino e Fernando Bonassi. Com direção de Heitor Dhalia, ele estreia em junho.
"Meus primeiros desenhos já indicavam o desdobramento de uma ação. Nunca se encerravam em si mesmos, então as coisas foram acontecendo de modo muito natural".
A chance de se envolver muito cedo com um trabalho seriado tornou-se assim valiosa. "Tive oportunidade de aprender a lidar com as nuances, com as diferenças que ocorrem entre a concepção e o tratamento do original até o momento em que ele vai ser impresso, toda a transformação que ocorre. Aprendi o quanto carregar nas tintas, nas cores e nas sombras para que a reprodução ocorra da melhor maneira possível".
O livro publica pela primeira vez a história "Acomodados! Acomodados!", que rendeu ao (ainda jovem) autor o Prêmio Ecologia da 1.ª Bienal Internacional de Histórias em Quadrinhos do Rio, em 1991. A história de cinco páginas acompanha um reclamista na Primeira República, entre o Rio sanitarista e em reformas urbanas e um ambiente rural - ali já são visíveis traços que acompanhariam a obra de Quintanilha ao longo dos anos, como a atenção às relações sociais e de trabalho. "Foi nesse momento que comecei a me voltar para as referências que tinham me formado como ser humano, totalmente pessoais", analisa o autor.
Quintanilha lembra-se com carinho do prêmio também. "Foi magnífico. Mas sobretudo por uma razão muito clara que tem a ver com o mercado da época. Para as pessoas que trabalhavam com quadrinhos, era muito difícil encontrar veículos para publicar seu trabalho. Então os salões e festivais passavam a fazer as vezes de mercado. Era um canal onde poderiam ser expostos. No caso foi interessante porque essa história tem muito dessa brasilidade".
Imprensa
"Todos os Santos" tem ainda dezenas de ilustrações do autor para a imprensa, em veículos como Trip, Bravo, Vanguardia, República, El País e ArtReview - no início do livro há uma entrevista com Quintanilha feita pelo jornalista britânico Paul Gravett, referência global da cobertura de quadrinhos. Ali, o autor reflete sobre o "realismo social" que perpassa suas obras.
"Eu nunca trabalho a partir da observação da realidade social, porque isso implica um inevitável distanciamento entre o observador e aquilo que é observo, e não trabalho desde a distância. Sempre acho que a melhor maneira de definir minha forma de escrever é através da ideia de que minhas histórias são o que eu sou", diz.
Na coletiva de imprensa de "Tungstênio", na última quarta, o escritor Fernando Bonassi (que assina o roteiro junto com Marçal Aquino e o próprio Quintanilha) elogiou a estrutura daquele livro do quadrinista. "Há um ruído narrativo do tempo, porque são cinco núcleos de vidas, num lugar comum, mas em tempos diferentes. A narração dá ordem a esse caos temporal, e isso dá uma dignidade para a história. A proposição narrativa do Marcello cria esse mistério e, quando ele se resolve, os personagens tornam-se especiais. Graciliano Ramos fazia isso".
O professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Waldomiro Vergueiro também é enfático. "Ele é um grande narrador gráfico, domina com maestria a técnica dos quadrinhos, sabendo utilizar os recursos da linguagem de forma adequada, sem exageros", diz Vergueiro, também coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA. "Vejo no trabalho dele um pouco do Frank Miller de 'Sin City', um pouco do ritmo narrativo que Eisner desenvolveu em suas histórias, especialmente nas peripécias do Spirit, mas também nas graphic novels, um pouco do ritmo narrativo de um Jean-Michel Charlier, mas também de um Héctor Oesterheld. Seus desenhos, especialmente, sempre me fazem lembrar um pouco do uruguaio Alberto Breccia e do argentino José Muñoz. Creio que ele bebeu um pouco em cada um deles, mas acabou desenvolvendo um estilo narrativo único".
Todos os Santos pode ser, assim, uma bela porta de entrada para esse universo.
Tiras
Em 2010, por pelo menos sete meses, Marcello Quintanilha desenhou tiras para o jornal O Estado de S. Paulo - uma espécie de "quadrão". "Todos os Santos", o novo álbum do autor publicado agora pela editora Veneta, reúne pela primeira vez esse trabalho (foram 22 tiras semanais).
Ao incorporar ao formato curto o agudo senso de brasilidade que recheia suas histórias mais longas, o autor construiu personagens e situações pouco usuais para quadrinhos publicados serialmente na imprensa - daqui e de qualquer outro país. "Tive oportunidade de fazer um trabalho muito contundente", diz o autor. "Isso não existe em nenhum lugar, estou muito orgulhoso desse trabalho".
Mesmo vivendo na Europa, Quintanilha diz nunca ter se sentido longe do Brasil. "Não fui minimamente influenciado pela vida que levo fora do Brasil. Minhas motivações artísticas são as mesmas de quando morava no Brasil, e talvez pudesse dizer que meu local de nascimento já tinha sofrido um processo de degradação e modernização, que fez o contexto que eu conheci desaparecer. Por isso adquiri um sentimento muito nostálgico de prezar muito aquele contexto. Talvez seja isso. Quando morava no Brasil já tinha perdido minhas referências".
Para ele, não havia diferença na chave utilizada para fazer as tiras do jornal e as histórias mais longas. "Procurava trabalhar de um dia para o outro, viver a dinâmica de publicação. Eu só pego em uma única chave. Realmente acredito no poder das histórias longas, mas da mesma forma nas histórias curtas e tiras. Eu adoraria voltar a fazer".
A diferença flagrante para o tipo de tira mais comum publicado nos jornais é o distanciamento que Quintanilha mantinha da tradição humorística e política, que remonta ao século XIX e que ganhou força durante a Ditadura Militar.
"Tenho muito pouco interesse em submeter meu quadrinho a determinado contexto histórico", diz o autor. "Não tenho interesse de encaixotar meu quadrinho numa determinada maneira de pensar, ou num pensamento específico".

Diário do Nordeste

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