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Cego Aderaldo: conheça o mestre que ajudou o Sertão cearense a ver

por 
Quando perdi minha vista
O meu corpo faleceu,
Saí no mundo cantando
A sorte que Deus me deu
Cego Aderaldo

O sertão é território privilegiado, profano e sagrado, de grandes expressões históricas e populares, que se transformaram em verdadeiras lendas, segundo Rosemberg Cariry. Nenhum cantador ou repentista do Nordeste brasileiro, em todos os tempos, gozou da fama e do prestígio de Cego Aderaldo. A beleza da voz, inteligência e agilidade no improviso de versos na arte da cantoria e do verso popular, nunca encontrou desafiantes à sua altura, sendo sua obra, testemunho comovente da superação dos limites sociais e existenciais impostos pela pobreza e deficiência física.
Aderaldo (Abelardo) Ferreira de Araújo, nasceu na cidade do Crato-CE em 24 de junho de 1878, e faleceu em Fortaleza-CE, em 29 de junho de 1967. Filho de Joaquim Rufino de Araújo e Maria Olimpia de Araújo, teve o Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará unidos em sangue através de suas descendências. Desde o nascimento ele já tinha o poder de unir o Nordeste.

De olhos bem abertos, Aderaldo chega ao mundo em meio à Grande Seca (1877), enxergando o mundo com olhos curiosos. Tendo o Cariri, terra de encantamentos, como seu berço, é no Sertão Central que faz a sua história. Devido à Grande Seca, sua família migra pelas estradas e chega à Quixadá, em meio a flagelados e retirantes, com pouco mais de dois anos de idade. Ao perder o pai ainda na infância, o pequeno Aderaldo assume a responsabilidade de
ajudar à sua mãe, não tendo a felicidade e a oportunidade de ser criança, fazendo-se adulto antes do tempo, devido à difícil situação familiar, que marca profundamente seu caráter e a sua forma de conduzir o mundo, por toda a sua vida.

Em 1896, o jovem Aderaldo sofre um acidente vascular, narrado poeticamente no Livro “Eu Sou o Cego Aderaldo”, de sua autoria: “ …era meio dia em ponto, entretido em meu trabalho de maquinista, senti sede e estando com o corpo muito quente, saí correndo até uma casa em frente à fábrica para obter um copo de água. Ao voltar para o meu trabalho, no meio do caminho, senti um estalo na cabeça, os meus olhos explodiram e tudo em redor de mim escureceu. Ceguei de repente, dos dois olhos… meus olhos se fecharam para sempre, fiquei completamente Cego.”
Devido à cegueira, Aderaldo abdica do seu grande amor, Angelina. Ao cegar, guarda para sí a imagem da beleza e do seu amor, não querendo ser na vida de sua amada, um motivo de desprezo e de trabalho, por ser Cego. Em sua vida, todas as mulheres se resumiram em Angelina. Homem digno e sério, sobre suas convicções e respeito à sua condição física e humana.
Sendo Aderaldo a figura que sustentava sua família, após ganhar um cavaquinho de uma vizinha, rapidamente aprendeu a tocar. Para ele, perder para sempre o colorido das paisagens era algo doloroso, mas não dor maior que sair à rua para pedir auxílio a um ou a outro para sobreviver. Era um homem de princípios e não aceitava pedir esmolas. E assim, começou a tocar e cantar, recebendo trocados para sustentar a família e a sua mãe, já doente.
Seu orgulho e percepção profunda dos acontecimentos da vida foram sempre a motivação para a arte de sua cantoria, dando nobreza ao ato de cantar e receber em troca, o pão de cada dia. É aqui, que a sua visão poética se torna muito maior que sua visão física.

O pagamento recebido pela primeira cantoria oficial se dá apenas com a morte de sua mãe, em 1898. Com o valor arrecadado, pôde providenciar o enterro digno que ela merecia. Ao passar pelo constrangimento da primeira cantoria por dinheiro para enterrar sua mãe, Cego Aderaldo faz para si a solene promessa de que nunca mais passaria pela vergonha de pedir esmolas e não mais lhe faltaria, enquanto vida tivesse, algum dinheiro na poupança.
A gente é para o que nasce. Cego e sozinho, Aderaldo ganha o Mundo e refaz a sua vida. Em sua alma, carregava a tristeza, a cegueira, a solidão e a viola, temperos essenciais que transformaram a sua vida e sua obra em algo altivo e próspero.

Vou entrar na poesia
Como um Doutor na Assembléia
Como o Papa entrou em Roma,
São Pedro na Galiléia
Cristo com seus apóstolos,
Entraram lá na Judéia

Mostrou que era Grande, ao adotar mais de vinte crianças, mesmo sozinho e se tornou pai, educador, companheiro. Eram esses filhos, os seus olhos físicos e seus guias, que preenchiam os vazios do seu coração. Mário Aderaldo, o filho também cantador, o acompanhou até a morte.
O maior em Aderaldo era o seu coração. Nunca se promoveu sozinho, levando sempre consigo outros cantadores e a defesa da Cultura Popular. Em 2017, a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, em sua cidade adotiva, inaugura o Equipamento Cultural e Escritório Regional do Sertão Central, a Casa de Saberes Cego Aderaldo, que influenciada pelos seus ideais e de outros Mestres da Cultura Popular, se torna um abrigo da tradição e lugar de afetos, onde a
Cultura Popular é preservada e traduzida com um olhar significativo, às linguagens contemporâneas.

Viva Cego Aderaldo, Viva à Cultura Popular Cearense.
Paula Geórgia Fernandes é arquiteta, fotógrafa, coordena o Escritório Regional da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará no Sertão Central e a Casa de Saberes Cego Aderaldo em Quixadá.






Diário do Nordeste

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