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Iniciativas apostam em ações de afirmação do lugar de fala negro

por Diego Barbosa - Repórter
A manutenção da saúde financeira da empresa e aumento da rede de distribuição são os desafios elencados por Vagner Amaro na condução das atividades da Editora Malê. Há também outro, que vai de encontro a uma lacuna histórica do País. "Ter que lidar com o preconceito que ainda existe em relação à autoria negra, pois isso impacta nas possibilidades de venda de livros e também de distribuição dos mesmos", explica o editor.
De acordo com Amaro, isso é sentido em toda a cadeia produtiva do livro, envolvendo desde a leitura de originais que chegam às mãos dos editores até a quantidade de obras de autores negros disponíveis nas estantes das livrarias.
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"Temos alguns fenômenos, como Paulo Lins, Elisa Lucinda e Salgado Maranhão. Mas minha análise é que houve por muito tempo um descrédito em relação às potencialidades da autoria negra por parte do mercado editorial", avalia. "Somente de forma independente é que escritoras e escritores negros foram publicando e encontrando manobras criativas para alcançar a recepção dos seus textos".
Tomando como parâmetro a forma de apreensão do público quanto aos conteúdos publicados no segmento, o editor da Malê comenta que a experiência de mediador de leitura e bibliotecário que possui vai na contramão da ótica mercadológica, apresentando uma luminosa face. "Há um grande interesse e empatia do leitor para os textos dos autores negros", avalia.
"Precisamos apenas estreitar as distâncias entre os leitores e esses livros. E isso se faz formando mediadores de leitura preparados e dispostos a trabalhar com a diversidade cultural brasileira, pautando e buscando mudanças no mercado editorial", complementa.
Multiplicidade
Gustavo Abreu - fundador e editor da mineira Letramento - também foi um dos que souberam abrir estradas rumo ao ideal de transformação no setor literário, considerando a presença de obras de autores negros. No caso dele, o caminho traçado deveu-se principalmente à publicação da coleção "Feminismos plurais", no ano passado.
Composta de 13 livros, a série é organizada por Djamila Ribeiro, mestre em Filosofia Política e feminista negra, e aborda aspectos e perspectivas dos feminismos tendo como base as experiências e os saberes de mulheres negras e indígenas e homens negros.
"A proposta é dar maior reconhecimento à multiplicidade de vozes do contexto social. Se percebermos bem, mulheres e homens negros e indígenas sempre foram tratados como sujeitos políticos relegados a um mero recorte. Com as obras da coleção, queremos ir em outra direção", considera o editor.
A boa recepção ao material - que já conta com mais de 20 mil exemplares vendidos e garantiu a presença de Djamila na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, espaço onde ela fará um relato de suas experiências desde a infância e adolescência, destrinchando conceitos como silenciamento e empoderamento - assinala uma tendência.
"O debate sobre essa multiplicidade de vozes se tornou mais do que urgente. Não dá mais pra esperar. As pessoas estão aí e não dá mais pra esconder isso". Pensando assim, a Editora Letramento alavanca outra novidade no campo: é o selo Sueli Ribeiro, que deve ter a primeira obra disponível, em pré-venda, já no próximo mês.
"É um selo que vai dar vazão a produções de homens e mulheres negros. O primeiro livro que sairá por ele será 'Escritos de uma vida', reunindo textos da própria filósofa e escritora Sueli Carneiro, publicados anteriormente em jornais, revistas e até em outros livros. A ideia é que o selo circule feito a coleção Feminismos Plurais", prevê Gustavo.
Afrofuturismo
Fábio Kabral é outro nome de destaque no campo literário, mediante o apelo jovem e crítico do que assina. Um dos fundadores do site "O Lado Negro da Força" e autor dos romances "Ritos de Passagem" (Giostri, 2014) e "O Caçador Cibernético da Rua 13" (Malê, 2017), o carioca escreve histórias desde criança, investindo também nas plataformas digitais como alternativa de divulgar suas ideias.
"Escrevo o que tenho vontade, quem classifica como 'temáticas' são os outros", diz, enumerando assuntos como afrocentricidade, espiritualidade africana, super-heroísmo de rosto africano e afrofuturismo como alguns dos que gosta de ver compondo narrativas, embora, infelizmente, não os encontre facilmente em páginas impressas.
Sobre o afrofuturismo, Kabral explica que ele passou a ser considerado apenas muito recentemente e as tentativas de definição na área ainda são bastante vagas. "Se me pedissem uma classificação mais concreta, diria que é um movimento cultural que mescla tradições e mitologias africanas com narrativas de ficção científica, com o necessário protagonismo de personagens e autores negras e negros", contextualiza o escritor.
Objeto de constante interesse pelo autor, o conteúdo é também aquele que norteia as discussões do artigo "Afrofuturismo: Ensaios sobre narrativas, definições, mitologia e heroísmo", mais recente texto escrito por Kabral, contando com referências que vão do pesquisador Nei Lopes ao ator e escritor Lázaro Ramos.
"Há muitas pessoas negras escrevendo - apesar de não sermos incentivados a isso -, e as editoras em geral não dão a mínima. Quando essa questão é abordada, é tachada de 'vitimismo', por exemplo. Nas minhas tentativas de publicação, aconteceu até de uma certa grande editora elogiar a qualidade do meu trabalho, mas disse que não iria publicar porque eu não 'me enquadrava no perfil'", relata.
"Só consegui publicar meu segundo romance quando entrei em contato com uma editora que publica exclusivamente afro-brasileiros e afro-descendentes em geral, e, a partir daí, pretendo seguir nesse caminho", relembra o autor. "Desejo boa sorte para quem ainda insiste em publicar de forma saudável nas editoras 'convencionais' que não aceitam o nosso 'perfil'".
Diário do Nordeste

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