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Discurso amoroso

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Duas ou três coisas que uma candidata a escritora precisa saber sobre esse ofício.

Por Max Velati*

Stella Borges tem 26 anos, está um pouquinho acima do peso e trabalha como gerente em uma padaria no interior de Minas. Ela não reclama do batente, mas quer ser escritora. Escritora mesmo, profissional, dessas que dão entrevistas e têm foto sorridente na orelha da obra. Escreve regularmente um diário desde os 13 anos e, sob a cama, há uma caixa de madeira com cadeado onde repousam protegidos todos os seus segredos. Sei de tudo isso porque ela me escreveu um longo email. Temos um amigo em comum e ele me pediu permissão para passar o contato. Stella Borges então mandou uma mensagem muito simpática e um anexo de seis páginas onde fez confidências, pediu conselhos e principalmente mapas com atalhos para chegar logo ao destino de escritora, que ela “não troca por nada desse mundo”.

Li o texto tocado pela força desse compromisso e honrado por merecer tanta confiança de uma desconhecida. Respondi oferecendo o que sei sobre o ofício da literatura neste país e pedi permissão para usar estas circunstâncias como tema para a coluna de hoje. Pelo talento que a moça mostrou ter, sei que mais cedo ou mais tarde vai publicar, vai ter a foto sorridente na orelha do livro e vai dar entrevistas. Por agora, Stella já é ao menos personagem principal de um artigo.

Decidi usar Stella como tema porque o ofício da literatura está em ebulição, prometendo novos arranjos de mercado, novas plataformas para o texto e novos espaços para escritores e roteiristas. Sobrevivendo há anos como operário do texto, da tradução e da ilustração, penso ter alguma coisa a dizer. Além disso, tenho o privilégio de conviver regularmente com outros escritores profissionais, alguns realmente bem sucedidos do ponto de vista comercial, e por tudo isso julguei que um artigo com um kit de emergência para iniciantes poderia ser de alguma utilidade.

A primeira observação importante a ser feita é sobre a diferença entre "escrever" e "ter escrito". Muita gente se empolga com a carreira na literatura e comete o erro de imaginar o livro já impresso, sem considerar com a devida responsabilidade a natureza do processo que gerou a obra. É muito comum querer publicar mais do que querer escrever. Na prática, quem tem essa visão distorcida da Literatura entende a escrita como um obstáculo incômodo a ser vencido, um mal necessário. São raros os que percebem que o ofício da literatura está todo ele no processo da escrita. Todo ele, repito.  

O livro impresso é um produto industrial, uma entidade até certo ponto estranha e muito distante do autor. Quem escreveu todas aquelas páginas vê o livro na verdade como uma célula vê a outra depois da mitose. Para o autor, em cada livro publicado há uma infinidade de horas de absoluta solidão, incertezas e angústias. Faz parte do processo. Qualquer escritor de verdade vai confessar a você que boa parte do trabalho consiste em tarefas repetitivas, confinamento, desamparo emocional e meses intensos quando a única certeza é que o mundo inteiro está se divertindo em uma grande festa e nós não recebemos o convite. Não é charme. O texto sério é muito exigente e a Musa é uma amante possessiva.

A outra observação importante é sobre o que acontece quando o texto está pronto, a distância real entre o original que você tem sobre a mesa e o livro impresso na prateleira da livraria. Depois de enviar o seu texto para as editoras interessadas no gênero, você vai esperar de três a seis meses por uma resposta. Uma editora assistente uma vez me contou que responderam ao autor depois de cinco anos. O meu recorde é um ano e meio, mas por outro lado, já tive livros aprovados e contratados antes mesmo de serem escritos, o que me coloca em um grupo muito reduzido de autores brasileiros.

Depois da longa espera, você vai receber de algumas editoras um email ou uma carta, mas será de rejeição. Não estou sendo cruel. Faz parte do processo ser rejeitado e crueldade mesmo é a prática de algumas editoras de sequer responder ao autor iniciante.

A rejeição significa que alguém da editora passou o original a alguém que consideram inteligente – pode ser um membro do conselho editorial, um editor assistente ou simplesmente uma estudante de letras amiga da editora. A verdade é que este leitor não percebeu com a devida clareza o seu talento e o original vai ser rejeitado por alguma razão ou razão nenhuma. 

É importante você entender que isso vai acontecer. Isso acontece com todos nós. Já fui recusado três vezes, portanto, vá em frente, compre um Everest de sorvete de chocolate, arme-se com uma colher e fique triste. Está no seu direito, mas não pense que o mundo acabou e lembre-se do que vou contar agora: Harry Potter foi recusado nove vezes antes de transformar a autora na mulher financeiramente mais bem sucedida da literatura. Um dos meus livros favoritos, “O Zen e a arte de manutenção de motocicletas”, de Robert Pirsig, foi recusado nada menos do que 102 vezes antes de ser publicado e alçado merecidamente à posição de marco fundamental da Filosofia Contemporânea. 

Se nada disso servir para restaurar o seu ânimo, lembre-se de que, em 1924, Londres organizou uma competição para eleger o melhor imitador do vagabundo Carlitos. O próprio Charles Chaplin competiu usando um nome falso e ficou em terceiro lugar. Estes são apenas alguns exemplos sobre as dificuldades de se julgar uma obra de arte e também como as decisões nem sempre são lógicas ou justas, mas aprenda com tudo isso e siga em frente. Aliás, aprenda com tudo! Isso também faz parte do processo.

Rainer Maria Rilke publicou em 1929 o famoso texto “Cartas a um jovem Poeta”, leitura fundamental ainda hoje. Recomendo como tarefa inadiável, mas sei que o escritor iniciante no Brasil também tem dúvidas concretas sobre direitos autorais e mercado. É uma questão legítima e não há uma resposta fácil. Perguntaram a um escritor experiente qual o conselho que daria a um escritor iniciante e a resposta foi cortante: tenha pouco apetite. Minha opinião, testada na prática, é de que é mais fácil alcançar segurança quando se faz o que gosta. Do contrário, nenhum dinheiro no mundo parece suficiente.

Aprender a escrever não é um processo linear, mas é um processo. Cada começo é um novo território sem mapas e essa aventura tem tanto a oferecer que é um pecado desistir ou "trocar este destino por qualquer outro", para usar os termos absolutos da minha colega Stella.

Como disse Natalie Goldberg, no delicioso "Escrevendo com a Alma", é bobagem não correr atrás da beleza só porque temos o medo em nosso encalço.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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