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Dez anos após a morte de José Saramago, obra do escritor é referência para se pensar o presente

Imagens: Dellano Rios
Legenda: José Saramago (1922-2010): três livros inéditos lhe garantiram uma boa média de produção literária após o falecimento
Foto: Divulgação
Contra a corrente
José de Sousa Saramago viveu muito, de seu nascimento em 16 de novembro de 1922, na minúscula Azinhaga do Ribatejo(a freguesia conta, hoje, com 1,6 mil pessoas), até sua morte, nas ilhas Canárias. Contava então 87 anos naquele 18 de junho quando, por fim, sucumbiu da enfermidade que há algum tempo sofria. Escreveu bastante também, mesmo que sua trajetória seja atravessada por um hiato de 19 anos sem qualquer publicação. Depois de um romance de pouca repercussão e de outro engavetado, no fim dos anos 1940, o escritor só voltou a publicar em 1966. “Simplesmente, achava que não tinha nada para dizer”, explicou, em seu habitual costume desmistificador.
Saramago era um pensador raro. Sem se distanciar da criação literária, refletia sobre a condição humana, enredada em questões universais ao gênero; e olhava para os problemas do instante e do local. Crítico social contundente, não mitigava a força de seu veredicto. Talvez por isso, havia certo amargor entre ele e seus conterrâneos. 
Ao vê-lo morto, Portugal se reconciliou com o autor. A notícia inundou a imprensa do País, numa instantânea maré de reavaliações que, em regra, reconheciam suas contradições e grandeza. Exatamente como ele, crítico e duramente realista, gostaria.
“É assim a vida, vai dando com uma mão até o dia em que tira tudo com a outra”, escreveu em “Intermitências da morte”, o romance em que o mal irremediável, sem explicação, deixa de acontecer em um país não nomeado. Já dez anos se passaram, desde que a morte tirou tudo de Saramago. Por ora, nós que aqui ficamos, ainda temos sua literatura, intensa e luminosa como um farol, em dias sombrios.
E hoje, o que Saramago escreveria?
O ateu José Saramago não ficaria feliz com suposições de feitos seus no além-túmulo. O comichão do velho clichê move a pergunta: o que Saramago, um crítico social tão atento às mazelas do mundo, falaria sobre este insólito 2020?
Temos o que deixou escrito até aquele fatídico dia, 18 de junho de 2010, quando o autor morreu. Mas, para falar conosco, de tempos de pandemia, alucinações políticas e convulsão social, há o suficiente.
"Ensaio sobre a cegueira", de 1995, parte de uma epidemia que se abate sobre uma cidade. Cegos, os que dela foram acometidos são encerrados num hospital abandonado. O livro é um estudo, pelo viés negativo, sobre a ética, que se pauta na empatia. "Tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso", explicou-se. Visão pessimista, avesso de quem acredita que tudo mudará, para melhor; e alerta para o imperativo da nossa interdependência.
Outro livro que dialoga com o momento, subversivamente, é "Ensaio sobre a lucidez" (2004). Na trama, sem mobilização, 70% da população de um país vota em branco. Governo e classe política empreendem ações para descobrir a raiz do estranho protesto. Os métodos passam por "prisões, interrogatórios, terrorismo de Estado". O descrédito do cidadão se confronta com o autoritarismo escondido sobre vestes democráticas.
Ler esses ensaios de Saramago ajuda a lembrar que o mundo e seus problemas não nasceram ontem.
Para saber mais:
Fundação José Saramago
Sede em Lisboa - Portugal

Agradecimentos: 
Professor e jornalista Gilmar de Carvalhoe antropólogo Ismael Pordeus Jr, que nos cedeu seu acervo de jornais e revistas com cobertura da morte de Saramago em Portugal (2010).
Diário do Nordeste 

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