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UM FILME TRANSGÊNERO

O filme A Garota Dinamarquesa trata do tema transgênero no início do século XX.
"O filme A Garota Dinamarquesa trata do tema transgênero no início do século XX. Considerando que hoje, quase um século depois, esse assunto ainda produz muita polêmica, podemos imaginar o quanto foi difícil para quem o viveu em tempos ainda mais conservadores. Os então chamados “desvios sexuais” eram tratados como casos de perversão ou mesmo considerados quadros de esquizofrenia", escreve Maria Ângela Bulhões, psicanalista e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA).

Eis o artigo:
O filme A Garota Dinamarquesa (The Danish Girl), que está passando no circuito de cinema de Porto Alegre, é um filme multinacional de drama pseudo biográfico. Dirigido por Tom Hooper e baseado no romance homônimo de David Ebershoff, é inspirado na vida das pintoras dinamarquesas Lili Elbe e Gerda Wegener. Vale a lembrança de que o ator que faz a personagem Lili é Eddie Redmayne, que ganhou o Oscar em 2015 com o filme A Teoria de Tudo, interpretando o personagem do físico Stephen Hawking, acometido por Esclerose. Em 2016, ele está novamente, com todos os méritos, concorrendo ao Oscar de melhor ator pela performance de Lili. Esses dois personagens interpretados por Eddie exigiram dele uma grande percepção do corpo. O complexo processo de transformação dos corpos dos dois personagens, com suas nuances, foi muito bem trabalhado e ocupou lugar central nas duas tramas.
O filme A Garota Dinamarquesa trata do tema transgênero no início do século XX. Considerando que hoje, quase um século depois, esse assunto ainda produz muita polêmica, podemos imaginar o quanto foi difícil para quem o viveu em tempos ainda mais conservadores. Os então chamados “desvios sexuais” eram tratados como casos de perversão ou mesmo considerados quadros de esquizofrenia. A ciência da época não considerava a hipótese de que o corpo pudesse não impor o gênero. A cirurgia de mudança de sexo começava a ser experimentada e pela sua complexidade, aliada aos poucos recursos da medicina da época, em que não havia sequer a penicilina, tornava-se um procedimento de altíssimo risco. Portanto, o aprisionamento a um corpo em discordância com a percepção psíquica de gênero parecia ser o destino. O sofrimento descrito por alguém que viveu essa experiência é com certeza comovente. Possivelmente muitos preferiram a morte.
Freud, também no início do século XX, começou a tratar do tema da sexualidade e afirmava que todos, homens e mulheres, no início de suas vidas, teriam uma predisposição bissexual em si próprios. O feminino e o masculino estariam presentes no mesmo sujeito e depois um lado sofreria maior recalque, fazendo com que o feminino ou o masculino tomasse maior livre curso. De qualquer forma, no nível da fantasia, ele considerava que o feminino e o masculino poderiam conviver com relativa tranquilidade, sem produzir maiores ruídos adoecedores.
Todavia, como vemos no filme A Garota Dinamarquesa, encontramos pessoas para quem a fantasia não é suficiente para solucionar algum conflito. Para elas, não é possível “fazer de conta”. A mudança de sexo precisa ser feita na realidade do corpo. O pênis precisa ser retirado e uma vagina deve ser construída em seu lugar. A cirurgia para a construção do pênis no corpo de uma mulher, por sua vez, ainda não avançou o suficiente para ser considerada com tanta frequência. Hoje, essas cirurgias são ainda tema de muitas discussões, envolvendo diversos profissionais. Entretanto, não é mais possível ser leviano e considerar essa opção como algo da ordem da loucura. É muito sério considerar um comportamento destoante como doença, já que uma pessoa pode, inclusive, estar evitando o enlouquecimento ao optar pela cirurgia. Claro que toda pessoa que deseja fazer uma mudança radical em seu corpo precisa elaborar esta decisão antes de tomá-la.
Ao longo do tempo, a psicanálise buscou se inventar e reinventar para dar conta das novas questões trazidas por seus pacientes. O sexual continua fazendo questão ao sujeito. Uma posição de abertura é exigida do psicanalista, para que este não se torne surdo aos novos interrogantes de sua época.
Instituto Humanitas Unisinos

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