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QUANDO O DIREITO DE UM ESBARRA NO DO OUTRO

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Difícil é a tarefa de medir a partir de quando o limite do razoável é extrapolado.
A lei ainda cuidou de permitir expressamente os ruídos advindos dos sinos de igrejas e templos.
A lei ainda cuidou de permitir expressamente os ruídos advindos dos sinos de igrejas e templos.

Por Renato Campos Andrade*

Há um ditado popular que diz: “o direito de um termina quando se inicia o do outro”. Pois bem, como se chega a esse limite? Oliver Wendel Holmes Jr., ex-Ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, dizia que “o direito de eu movimentar meu punho acaba onde começa seu queixo”. Regra semelhante, mas sem o sarcasmo e grosseria da citação supra, dita em Mateus 7:12, ensina: “não faça ao outro o que você não gostaria que o outro fizesse a você”. Este princípio supremo é conhecido como regra de ouro.

Para uns, o homem foi feito para viver em sociedade (Aristóteles), enquanto para outros, o homem é o lobo do homem (Thomas Hobbes). Fato é que viver em sociedade é tarefa árdua e, pouco importa como surgiu o Estado e suas leis (teoria determinista ou contratualistas), as leis são necessárias, visto que os limites morais são comumente ultrapassados.

Difícil é a tarefa de medir a partir de quando o limite do razoável é extrapolado e merece ser sancionado. Por óbvio que existem situações claras de abuso e que devem ser exemplarmente punidas.

O cotidiano nos revela diversas situações que se inserem no que já foi retratado. No entanto, três delas – lei do silêncio, direito de possuir animais e devassa da intimidade – serão abordadas nesse Dom Especial.

A “Lei do Silêncio” é arguida aos quatro ventos, mesmo por leigos, mas sem os devidos contornos jurídicos. Todos têm direito ao sossego, mas em que ponto o barulho passa de mero incômodo para afronta e ilegalidade?

Pouco tempo atrás, a Igreja do Salto Weissbach, localizada em Blumenau, parou de tocar seus sinos. A reclamação era que, especialmente às 6h da manhã, o ruído do badalar dos sinos ultrapassava o limite legal. A decisão dividiu a população.

Em Brasília vislumbra-se uma constante luta entre os donos de bares, artistas e produtores culturais contra o Instituto Brasília Ambiental (Ibram), responsável pela fiscalização e cumprimento da lei. Existe uma tentativa de aumentar os limites impostos pela legislação vigente.

Em Minas Gerais, desde 1978 a questão é regulada pela Lei 7.302/78, cuja redação é bastante esclarecedora acerca das hipóteses de sanção e permissão. Primeiramente, a norma indica que a punição será aplicada àqueles que produzirem ruídos (som puro ou mistura de sons com dois ou mais tons) capazes de prejudicar a saúde, a segurança e sossego públicos.

O som das motocicletas com escapamentos furados ou adulterados (tão comuns e barulhentos) são expressamente vedados:

Art. 3º - São expressamente proibidos, independentemente de medição de nível sonoro, os ruídos:

I - produzidos por veículos com o equipamento de descarga aberto ou silencioso adulterado ou defeituoso;

II - produzidos por veículos sonoros, aparelhos ou instrumentos de qualquer natureza utilizados em pregões, anúncios ou propagandas, nas vias públicas, nos domingos e feriados, de 0 (zero) a 24 (vinte e quatro) horas, e, nos dias úteis, das 20 (vinte) às 9 (nove) horas e das 11 (onze) às 14 (quatorze) horas, na forma estabelecida em regulamento.

III - produzidos por buzinas, ou por pregões, anúncios ou propagandas, à viva voz, nas vias públicas, em local considerado pela autoridade competente como "zona de silêncio";

IV - produzidos em edifícios de apartamentos, vilas e conjuntos residenciais ou comerciais, por animais, instrumentos musicais, aparelhos receptores de rádio ou televisão, reprodutores de sons, ou, ainda, de viva voz, de modo a incomodar a vizinhança, provocando o desassossego, a intranquilidade ou o desconforto;

(...)

VI - provocados por bombas, morteiros, foguetes, rojões, fogos de estampido e similares;

Certamente ao ler as hipóteses proibidas já se percebe o amplo desrespeito legal.

A lei ainda cuidou de permitir expressamente os ruídos advindos dos sinos de igrejas e templos, no período das 7h às 22h, exceto aos sábados e na véspera de dias feriados ou de datas religiosas de expressão popular, quando então será livre o horário, de bandas de música nas praças e nos jardins públicos e em desfiles oficiais ou religiosos e de sirenes ou aparelhos semelhantes, quando usadas por batedores oficiais, em ambulâncias, veículos de serviços urgentes, ou quando empregados para alarme e advertência, limitado o uso ao tempo estritamente necessário, entre outros.

A punição do infrator é feita por meio de aplicação de multas.

Em Belo Horizonte, os valores podem ser bastante pesados, dependendo do caso concreto, gravidade e em casos de não cessação da irregularidade:

Art. 17 - Os valores das multas, de acordo com sua gravidade, variarão de R$ 80,00 (oitenta reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais), atualizados com base nos índices estabelecidos na legislação pertinente, sendo fixado o valor inicial em:

I - infração leve: de R$ 80,00 (oitenta reais) a R$ 400,00 (quatrocentos reais);

II - infração média: de R$ 450,00 (quatrocentos e cinquenta reais) a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais);

III - infração grave: de R$ 2.550,00 (dois mil quinhentos e cinquenta reais) a R$ 5.000,00 (cinco mil reais);

IV - infração gravíssima: de R$ 5.500,00 (cinco mil e quinhentos reais) a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

(Lei nº 71 de 28 de dezembro de 1948)

Importante ressaltar que o horário noturno apenas reduz os limites, mas as infrações podem ser cometidas à luz do dia, em qualquer horário.

A advogada, pós-graduada em Direito Processual Aplicado e perita em cálculos trabalhistas, Lucélia de Oliveira Alves Campos, aborda a questão em seu artigo A lei do silêncio e o direito ao sossego: limites e regras. Segundo ela, já na esfera criminal, a violação ao sossego alheio pode trazer consequências para aquele que a cometer, nos termos dos artigos 42 e 65 da Lei de Contravenções Penais - que caracteriza tal violação como delito de perturbação do sossego -, com penas que variam de 15 dias a três meses ou multa. 

Outra situação que merece reflexão é sobre os proprietários de animais. Prazer para uns, incômodos e até ameaça para outros. Existe alguma limitação para ser proprietário de animal? Basta lembrar a grande quantidade de notícias sobre ataques de cães, cuja responsabilidade pelos danos é dos seus proprietários. O advogado Ricardo Augusto Alves Ferreira aborda de forma esclarecedora a questão, no artigo O direito de possuir animais.

Está em confronto o livre direito das pessoas em possuir animais em suas dependências, de acordo com a faculdade de usar, gozar e dispor da propriedade e o uso anormal da propriedade, descrita no Código Civil, artigo 1.277: “o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha”.

O mesmo Código Civil prevê várias regras acerca do Direito de Vizinhança. Uma disposta no artigo 1.301 merece destaque e dispõe que é defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço ou varanda, a menos de metro e meio do terreno vizinho. Seria uma violação, uma devassidão da privacidade do vizinho.

O Judiciário está cheio de casos em que as aberturas de janelas devem ser fechadas.

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE VIZINHANÇA. ABERTURA DE JANELAS. AFONTA AO ARTIGO 1.301 DO CC. DEVER DE EFETUAR O FECHAMENTO DAS ABERTURAS.

Evidenciado, pelo conjunto probatório dos autos, que a demandada, ao efetuar reformas em seu imóvel, abriu janelas a menos de metro e meio do terreno vizinho, desrespeitando o contido no art. 1.301 do CC, de rigor é o fechamento das aberturas. (TJRS - Apelação Cível AC 70060800208)

No artigo Direito de vizinhança x construções de janelas e aberturas, a advogada e pós-graduanda em Direito Tributário, Raila Rivani Bastos de Oliveira, afirma que além de ser obrigado a desfazer a construção irregular, o construtor poderá, inclusive, responder por eventuais perdas e danos que tenha causado ao vizinho prejudicado.

Enfim, diante de tantas possibilidade de perturbações e de condutas sociais comuns, mas reprováveis, melhor trocar o ditado para “muito ajuda quem não atrapalha”.

Sugestão de pauta

A Super Manchete de Direito é uma publicação semanal do portal Dom Total, em parceria com a Escola Superior Dom Helder Câmara, com a colaboração de profissionais e especialistas nos temas abordados. Envie-nos sugestões de assuntos que você gostaria de ver nesta editoria, pelo e-mail noticia@domtotal.com, escrevendo 'Manchete de Direito' no título da mensagem. Participe!

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