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EUA comemoram chegada de Angela, a 'Eva' dos escravos africanos

Quase um terço dos 350 escravos morreu antes de a travessia ser concluída, devido às terríveis condições a bordo.
A arqueóloga Charde Reid trabalha em uma  escavação em Jamestown, Virgínia, associada a Angela, que segundo historiadores é a primeira mulher africana documentada na Virgínia.
A arqueóloga Charde Reid trabalha em uma escavação em Jamestown, Virgínia, associada a Angela, que segundo historiadores é a primeira mulher africana documentada na Virgínia. (AFP)

No calor sufocante do verão em Jamestown, cidade histórica na costa leste americana, a jovem arqueóloga Charde Reid escava cuidadosamente o terreno em busca de fragmentos da vida de Angela, a "Eva" dos escravos africanos chegados há 400 anos.
Depois de uma aterradora travessia do Atlântico, Angela foi uma das primeiras pessoas trazidas da África para serem escravas no primeiro assentamento inglês permanente na América do Norte, que mais tarde seria parte dos Estados Unidos.
"Eu vejo muitas conexões com o passado da minha própria família e o que começou aqui, em 1619", diz Reid, uma afro-americana nascida há 32 anos no estado da Virgínia.
Reid chama os primeiros africanos que chegaram a estas terras de "nossos ancestrais e antepassados, não apenas da cultura afro-americana, mas da cultura americana em geral".
Sua própria árvore genealógica, diz, inclui um servo branco e um escravo negro.
Enquanto escrava, começam a aparecer tijolos: os restos dos edifícios mais recentes erguidos na propriedade de Jamestown onde Angela morava, em uma planície verde ondulada que se inclina suavemente em direção ao rio James, provavelmente não tão diferente da paisagem que os escravos viram em agosto de 1619.
Barcos de escravos
Naquela época, os traficantes de escravos portugueses e espanhóis já vendiam africanos para trabalhar na América – no Brasil, por exemplo – há quase um século.
Originária do reino de Ndongo, no que hoje é Angola, Angela embarcou em um navio português em Luanda, que então seguiu para Veracruz, na colônia espanhola do México moderno.
Quase um terço dos 350 escravos morreu antes de a travessia ser concluída, devido às terríveis condições a bordo.
E, antes de chegar a Veracruz, dois navios atacaram a embarcação portuguesa, sobrando cerca de 60 africanos, relata James Horn, presidente da Jamestown Rediscovery Foundation, responsável pela escavação.
O primeiro dos dois navios, o "Leão Branco", chegou à Virgínia no final de gosto de 1619, segundo John Rolfe, um rico colono inglês que era marido de Pocahontas, filha de um poderoso líder tribal nativo americano.
Ao chegar a Point Comfort, agora Fort Monroe, perto de Jamestown, os corsários trocaram "20 e poucos" africanos por suprimentos. O segundo navio, o "Tesoureiro", chegou pouco depois, deixando um pequeno grupo de africanos.
O único nome preservado para a história foi o de Angela, "a primeira mulher africana documentada na Virgínia", diz Bly Straube, curadora do Jamestown Settlement, um museu de história viva.
"Para mim, a história é um pouco parecida com a de Eva", explica Bly à AFP. "Ela e o restante dos africanos que chegaram em 1619 são a geração fundadora do que se tornaria nossa comunidade afro-americana. Esse é o começo", completou.
"Parada sobre seus ombros"
Sua chegada marca o início de um período sombrio na história dos Estados Unidos: 250 anos de escravidão seguidos de um longo período de segregação racial, cujas repercussões ainda são sentidas na sociedade.
Os africanos escravizados chegaram logo depois que os colonos fundaram a primeira legislatura local em 30 de julho de 1619, um "paradoxo" da história para Horn.
Apenas algumas semanas depois "da primeira expressão do nosso experimento democrático", chegaram pessoas "despojadas de seus direitos e até de sua identidade", diz o historiador.
"Essa é uma parte fundamental da nossa história como americanos", enfatiza.
Para Terry Brown, o primeiro superintendente negro do Monumento Nacional de Fort Monroe, a história da escravidão nos Estados Unidos é "a maior história de sobrevivência documentada da história norte-americana".
Brown e sua equipe comemoraram as "contribuições" dos africanos para a sociedade americana com vários eventos.
"Quanto mais nos encontramos, mais falamos, mais fácil é quebrar o racismo insidioso", diz Brown, que descobriu, por meio de um teste de DNA, que seus ancestrais vieram de Camarões.
Ele diz que "é muito emocionante" pensar nos primeiros africanos que vieram para a Virgínia, incluindo Angela. "Isso foi há 400 anos. Quem imaginaria que hoje estaria aqui em seus ombros?", indaga.
Escravidão herdada
No início de 1620, havia 30 africanos registrados na Virgínia. O nome de Angela aparece nos documentos do censo da colônia em 1624 e 1625; mas como "Angelo".
Alguns historiadores discordam de seu nome real, provavelmente dado pelos portugueses.
Mas todos concordam que ela era uma escrava da rica família Pierce. Provavelmente trabalhava na casa e no jardim, de acordo com Straube. Provavelmente também vivia com os serviçais brancos, de acordo com Straube e Horn.
Foi apenas 40 anos após a chegada de Angela, por volta de 1660, que várias colônias inglesas na América do Norte decretaram que o status de escravo seria herdado por linha materna.
O casamento interracial não era permitido, uma proibição que continuou em vários estados até o século XX.
Depois de 1625, Angela desapareceu dos registros, mas seu nome está agora, mais do que nunca, no centro das atenções em Jamestown.
A pesquisa sobre os primeiros africanos oferece "a mais completa história do passado americano, com a qual ainda estamos lutando", afirma Reid.
"Estou muito otimista de que estamos tendo uma mudança radical aqui. E é realmente incrível fazer parte disso", celebrou.

AFP

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