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PENSANDO COMO ANDO!

Júnior Bonfim*

Que venha um novel novelo de doze avos! Que venha um novíssimo feixe de doze meses, um bloco extasiado de 365 dias! Que se esparrame, clara e gema espalhadas, o Ano que estala, estrelado, espraiado, estrepitoso, radioso!

Estou pensando como ando, após escalar a trilha íngreme e florida do platô existencial! Resolvi fechar as pálpebras para melhor enxergar os passes e impasses destes mais de vinte mil dias batismais sob os sóis e os sais elementares. A primeira, porque foi a que me gestou, a descoberta mais importante: o que vale, o que abre vala, o melhor da vida é o amor! O amor, cuja principal tradução é a magia da doação, foi o que levou o casal Jesomar e Rosária a uma copulação extasiante. Fui gerado sob as labaredas de um romance proibido, em uma cama de areia fria, à sombra de uma frondosa oiticica do riacho do Mondubim. (Depois vim a saber que o amor extrapola as fronteiras da afeição de um casal e encontra a foz da plenitude no mar da doação a todos os seres.) Na sequência, dois raios, duas rosas, a pala e a opala, a ciosa e a preciosa, a verdade e a bondade: a poesia e a espiritualidade.

Pensando como ando, recordo que, ao redor do quinto maio da minha andança vital, saboreie precocemente o sacramento da eucaristia inicial e, vestido em uma roupa branca como a flor do algodão, recitei em cima de uma mesa a primeira poesia. Desde então, a afeição ao movimento do desconhecido, a ciência e a reverência à transcendência, o culto ao império do mistério e a força que põe de pé o estandarte da fé se incorporaram ao leito da minha alma e me indicaram o itinerário da calma.

Pensando como ando, silenciosamente seguro a pá e com ela recolho o produto da lavra: a palavra! Esta escritura, a primeira para o novo ano, é espumada, como se as suas letras fossem as encantadas minúsculas bolhas fermentadas que se espalham pela superfície. Espumas brancas, eis o que brota desta crônica de inauguração anual; aliás, à Castro Alves, são espumas flutuantes! – como as palavras e os números: consoantes cardinais, vogais romanas, números!...

Pensando como ando, confesso que vez por outra me submeto à escravidão de uma profissão. (Na verdade não queria outra ocupação senão aquela da messe da alegria: a ocupação da melodia!) Queria que todos se afeiçoassem àquela que tudo cria: a usina da poesia!

Se eu tivesse que recorrer a uma miragem, um pontal, uma baía, um morro, uma reminiscência geográfica, um cortejo latitudinal, uma paisagem expressiva desse momento que estamos a iniciar, certamente haveria de transmudar para o platô referencial do meu Mondubim inicial.

Quando perambulava, com a tocha do deslumbre, à sombra das oiticicas da infância, as almas que mais me fascinavam eram as dos adivinhadores. Eles eram transfronteiriços, transversais e transcendentais! Simplesmente, voavam! Desconheciam limites entre céus e terra e revelavam o comportamento futuro da natureza, o advento do inverno, o humor dos bovinos, as ensinanças da noite, os mistérios da madrugada e aos mungidos da aurora. Não raro se sentavam na calçada alta do amplo alpendre do casarão do meu avô para compartilhar a heráldica invisível do sertão. Foi aí que nasceu a minha predileção especial pelos adivinhos. Descobri que o sacro ofício de adivinhar era trazer o divino para o nosso íntimo altar. Ou melhor: adivinhar era revelar a dimensão divina da arte de voar.

Minha fortuna começou quando me tornei sócio do amanhecer, parceiro dos córregos, perscrutador das raízes e admirador das germinações! Amanhã estarei viajando. Com este pé, latejando de fé, vou caminhando. Pensando como ando. E, invariavelmente, amando!

*Dr. Júnior Bonfim, da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (Amlef), advogado, poeta, escritor.

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