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O reggae refletido pelo Farol do Mucuripe soa como tons cadenciados da resistência juvenil
O passinho leve de quem já encontrou a sua dupla parece deslizar pelo chão maltratado do Farol à meia-luzFoto: Kléber A. Gonçalves |
O vértice natural formado pelo encontro da imensidão do céu azul e o palpitar das ondas do Titan fica mais bonito com música. É em um dos locais mais altos do Serviluz, na Regional II, que um coletivo de jovens pinta o chão, lasca os muros e usa o antigo Farol do Mucuripe como refletor da sua história de luta.
A antiga fortificação - abrigo dos pequenos titãs - foi forjada a partir da prostituição. Da rua atrás do Farol surgem nome e mácula: Titanzinho para os mais chegados; zona de cabaré para os mais antigos. Há algumas décadas, a Rua General Titan convergia os marinheiros e as profissionais do sexo, necessidade financeira e libido armazenada. Isso e mais uma infinidade de histórias que sequer tinham relação entre si formaram o que hoje é conhecido como Serviluz.
De lá para cá, a região muito mudou, embora as negações de assistência e infraestrutura continuem sendo uma constante. Aquele ponto alto, porém, segue da mesma forma, sendo visto por todo mundo e observando a vida alheia, como se fizesse parte do imaginário do local.
“O Farol sempre foi um ponto de encontro da comunidade. A gente traz um som, traz um lazer e isso potencializa aquilo que a comunidade já se apropriou há muito tempo”, revela Pedro Fernandes, integrante do Coletivo Servilost, daqueles que pinta, lasca e reflete a luta do seu povo nas paredes do patrimônio cearense.
União
Ele, Priscilla Sousa e mais alguns jovens da região se reúnem frequentemente com a intenção de mudar. A Associação dos Moradores do Titanzinho se transforma em quartel-general da metamorfose, como se houvessem corpos capazes de abraçar diversos pontos dos bairros.
“Não é só no Farol, é criando outros espaços. No campo, na Pontamar... A gente vê a importância de estar ocupando vários lugares do Serviluz pra tá falando das coisas que a gente acredita”, explica Priscilla enquanto ajeita o boné - como se quisesse escapar da beleza da lua que brilha acima de si.
O Servilost, inclusive, surgiu da inquietude de jovens que, embora separados, já faziam ações pela região. “Os meninos sempre queriam fazer alguma coisa na ânsia de estar juntos seja pra melhorar o local ou pra fortalecer a identidade também com o mar”, considera Pedro.
Donos de diversos dons artísticos, a pintura, a fotografia e a ilustração complementam o trabalho que já vinha sendo efetivado por meio do cinema e da música. “A gente começa a se descobrir como criador de coisas que podem ser mais potentes se tivermos juntos”, completa.
O reggae
Foi por causa da certeza de que a união faz a mudança que o Servilost resolveu promover o Sarau Giramundo, ocorrido junto à intervenção de audiovisuais com a temática reggae. Do vermelho, amarelo e verde rastafári se embolam corpos e gingados da periferia, embebidos pelo luar e pelo som rastejante nascido na Jamaica.
O passinho leve de quem já encontrou a sua dupla parece deslizar pelo chão maltratado do Farol à meia-luz. A certeza de diversão é certa. Quanto mais alto ecoa o som, mais gente se encontra e se acha.
Farol Roots
Há dois anos, no mesmo local, o Coletivo organizava o Sarau Farol Roots, ocorrido sempre às quartas-feiras, durante um ano e três meses. “Em 2016 a gente fez uma ocupação muito intensa. Foi um período em que no Serviluz as pessoas resolveram fazer a pacificação, que foi linda, teve uma energia muito grande e a periferia nesse período deixou de morrer”, relembra Pedro, ressaltando que naquele momento parecia que o povo estava “celebrando a vida”.
Foi um período em que no Serviluz as pessoas resolveram fazer a pacificação, que foi linda, teve uma energia muito grande e a periferia nesse período deixou de morrer
Nesse período, de acordo com ele, não houve o Sarau apenas três vezes, todas em decorrência da morte de algum amigo ou pessoa próxima. “Um dia a gente terminou aqui o sarau era 22h, 22h15 e foi maior baile, maior alegria. Teve um confronto aqui com mais de 30 tiros depois que terminou tudo. A gente tava guardando o material e eu fiquei com o sistema nervoso todo abalado”, narra. Depois desse dia, o Sarau acabou.
Repressão
“A gente tá no meio de repressão do Estado e de uma crítica da própria comunidade. Essa rasteira do nosso próprio povo, que é lascado que nem nós, juntamente com a rasteira do Estado - que sempre nos deu - como é que a gente permanece forte em meio a tudo isso?”, questiona Priscilla, ao afirmar que o Sarau anterior já foi alvo de pelo menos cinco ações da Polícia Militar.
“E a forma como eles chegam, né? Parece uma ação do exército, que tem um bocado de gente armada”, completa. As críticas à ação policial levaram o Coletivo à vice-governadoria, que implementa o projeto Ceará Pacífico na teoria e na prática. “A gente tava dizendo que, na prática, tava acontecendo repressão policial, então, ajeite essa teoria aí”, apontou.
Zeis
Da falta de apoio na Segurança Pública à ausência do Estado na região é um pulo. “O Poder público abandonou a gente há muito tempo. Somos órfãos, a mama África de alguma coisa. Nessa resistência, mil coisas acontecendo e a gente tentando vencer essa maré de coisa ruim que sempre vêm atormentando as gerações do Serviluz”, ressalta Pedro Fernandes, ao pautar a questão das Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) de Fortaleza, das quais o local integra uma delas.
Na Capital, de acordo com a Prefeitura de Fortaleza, essas zonas ocupam 6% de todo o território da cidade e abrigam mais de 400 mil pessoas, cujas remunerações giram em torno de um e três salários mínimos. Há três tipologias diferentes de zoneamento, mas o Serviluz, em sua grande maioria, apresenta característica de Zeis 1, conhecida como “Zeis de ocupação”.
Em novembro, a Prefeitura de Fortaleza empossou o conselho gestor da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) do Serviluz. A Universidade de Fortaleza (Unifor) ficou responsável pela elaboração do do Plano Integrado de Regularização Fundiária (Pirf) da comunidade.
O Plano Diretor Participativo de Fortaleza (PDPFOR), de 2009, já previa a regulamentação desses espaços, por meio da formalização e eleição de um conselho gestor - que teria poder consultivo e deliberativo. No documento, há obrigatoriedades a serem tomadas pelo Poder Público a fim de promover regularização fundiária, urbanística e ambiental. Há objetivos para eliminação de riscos ocorridos a partir da ocupação e para ampliação da oferta de infraestrutura urbana.
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