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Lançamento da obra está marcado para sexta-feira (9), na Casa José de Alencar. Material é todo feito à mão, com arte do bordado
Não a tranquilidade de uma vida em paz, mas o desassossego da rotina. É disso que a dona de casa Maria de Fátima Alves, 65 anos, fala quando resgata da memória o motivo de ter conhecido o grupo de mulheres do qual faz parte hoje, no bairro Jardim Iracema.
"Eu tava passando por um momento muito difícil há 12 anos e, ao deixar meu neto no Projeto Criança Feliz, acabei recebendo um convite pra participar de uma atividade que uma das professoras da casa ia iniciar", conta. Foi naquela época que começou a dar os primeiros passos no bordado, ofício que atualmente realiza com maestria. "Eu nem sabia pegar na agulha, me tremia todinha", confessa entre risos, relatando ainda que um dos desenhos que bordou nesse período de aprendizagem foi uma representação da primeira casa onde morou na comunidade, numa espécie de vila. "Tinha um esgoto de uma vila pra outra e eu desenhei. Bordei até uma plantinha que tinha na porta".
Já a lembrança de Dalva Maria, 64 anos, dialoga com a vivência no interior do Ceará, em Capistrano. Lá, como recorda, fazia "de um tudo": apanhava feijão e milho, plantava, trabalhava na roça. Ao chegar a Fortaleza aos 19 anos, conheceu o atual esposo, casou e teve uma filha, que durante 25 anos também participou, feito o neto de Maria de Fátima, da mesma instituição social.
Diferentemente da amiga, ela aprendeu a arte do bordado nos primeiros anos da infância. "Na escola lá do interior, a gente já tinha noção dessa arte. As professoras tiravam um dia para dar aula apenas disso e era sobre aqueles primeiros pontinhos, como o ponto de cadeia. Depois desse período, fiquei muito tempo sem bordar. A coisa mudou quando conheci o grupo de mães".
As duas histórias que você acabou de ler - aparentemente tão simples na superfície - revelam olhares profundos sobre a travessia de personagens anônimas e que, por isso mesmo, resguardam causos tão semelhantes aos nossos. Sobre amores, dores e alegrias presentes no cotidiano diário.
Sobre ternura também, matéria-prima principal do livro "Memória das Flores - narrativa de mulheres que fiam a vida bordando". A obra será lançada nesta sexta-feira (9), às 15h, na Casa de José de Alencar, durante execução do projeto "Histórias e Quintais", capitaneado pela ONG Projeto Criança Feliz, localizada no bairro Jardim Iracema.
Organização
Reunindo 35 textos escritos pelas próprias participantes do grupo de mães da instituição à frente do projeto, o trabalho foi contemplado pelo edital das artes da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) e é organizado pela pedagoga Isabel Cristina Cardoso, uma das educadoras da casa. Ela afirma que a ideia de compilar o material nasceu da necessidade de registrar oficialmente as ricas narrativas contadas nas reuniões quinzenais do grupo. Antes disso, a profissional anotava a próprio punho o que escutava das mulheres.
"As conversas giram em torno do cotidiano marcado pelas dificuldades financeiras, questões de gênero e violência urbana, por exemplo, apesar de não haver um assunto específico. É sobre a vida. É isso que transborda nas cirandas", dimensiona. "Também falamos sobre o feminino, a forma de elas criarem os filhos, todos esses elementos de mulheres que são mães e avós, pessoas trabalhadoras e de muita força".
Cada detalhe se reflete no livro de forma singular. Toda a obra foi feita manualmente e contando com a colaboração das mães integrantes, a começar pela capa, inteiramente bordada por dona Maria da Luz. No miolo, as páginas são emolduradas por pedaços de retalhos bordados, a partir de colagem.
Já os textos carregam os fatos da vida de cada mulher e contam com a caligrafia caprichada de Alba Alves, também colaboradora do Projeto Criança Feliz. Ela afirma que, no ato de transcrever as narrativas - atividade com três meses de duração - manteve a forma como as mães se expressavam no papel, o que justifica a ausência de intervenção gramatical e editorial do registro.
"As histórias estão na íntegra, com as palavras delas e toda a simplicidade que possuem. Vejo isso como o principal diferencial e beleza desse livro: não existe uma simetria, até porque eu não sou uma máquina. A caligrafia tem imperfeições, desníveis, tendo em vista que é um processo que depende de muita coisa, mas foi tudo feito com muito cuidado", pontua.
"Eu não sabia nem pegar na agulha, fui aprendendo aos poucos. Hoje, é lindo ver meus bordados." Maria de Fátima Alves, bordadeira
"Felicidade e gratidão é o que sinto pelo nosso trabalho. Tudo muito simples, mas também muito especial." Dalva Maria, bordadeira
Gratidão
A proposta é que cada pessoa que compareça ao lançamento ganhe o livro. Após essa distribuição inicial, há a ideia de comercializá-lo, transformando em renda o trabalho feito com tanto esmero. Isabel Cristina comenta ainda que não descarta um possível segundo volume da obra. "O projeto é marcado muito pelo afeto, pelas relações que se estabeleceram entre essas mulheres. Então, se depender disso, outros volumes vão chegar".
Já quanto às expectativas para o dia de ver o exemplar prontinho é alta por parte das mães. De um lado, Maria de Fátima afirma: "Ave Maria, a emoção é muito grande, será gratificante pra mim"; do outro, dona Dalva completa: "Sinto felicidade, emoção, gratidão. Saber que foi feito pela gente me deixa muito feliz".
Investimento humano
O bordado é apenas uma das diversas artes aprendidas por quem passa pelo Projeto Criança Feliz, organização filantrópica fundada em 1986. Se a ênfase do ofício de costurar tecidos recai sobre as mães dos pequenos integrantes do projeto, atividades envolvendo música, contação de histórias, poesia e dança contemporânea, por exemplo, são diretamente ligadas a eles. No total, a entidade atende quase duas mil crianças, adolescentes e jovens provenientes das comunidades Jardim Iracema (onde se localiza) e Padre Andrade.
Em parceria com o ChildFund Brasil, desenvolve quatro projetos, todos ligados à arte, a saber: "Arte em toda parte - Caminhos para inclusão social", "ItinerArte", "Histórias e quintais" e "Pé na Rua". Além disso, oferta apoio pedagógico, mirando em atividades como programa de formação de leitores e inclusão digital.
Vale mencionar também os espetáculos que realizou, apoiados pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Ceará (STDS): "José e outras histórias", em 2008, e "João de arribação", entre 2009 e 2010.
Nesse aspecto, é particularmente importante sublinhar que cada um dos projetos desenvolvidos tem dado um retorno positivo de reconhecimento à entidade. Da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), a casa já recebeu prêmios como "Pontinho de Cultura", "Pontos de leitura" e "Prêmio de Literatura" - na categoria Ação Cultural; já da Secult-CE, foi laureada com o "Pontinho de Cultura do Estado do Ceará".
Serviço
Lançamento do livro “Memória das flores - narrativas de mulheres que fiam a vida bordando”. Nesta sexta-feira (9), às 15h, na Casa de José de Alencar (Av. Washington Soares, 6055, Alagadiço Novo). Contato: (85) 3286-3401
Lançamento do livro “Memória das flores - narrativas de mulheres que fiam a vida bordando”. Nesta sexta-feira (9), às 15h, na Casa de José de Alencar (Av. Washington Soares, 6055, Alagadiço Novo). Contato: (85) 3286-3401
Memória das flores - narrativa de mulheres que fiam a vida bordando
Organização: Isabel Cristina Cardoso
Independente 2018, 30 páginas
Distribuição gratuita no lançamento
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