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Vidas ou economia? Uma pergunta sem sentido do ponto de vista cristão

Colocar a economia de um país acima da vida de pessoas é, na perspectiva cristã, algo diabólico
Força-tarefa da prefeitura interdita 28 estabelecimentos no último fim de semana de março em Salvador
Força-tarefa da prefeitura interdita 28 estabelecimentos no último fim de semana de março em Salvador (SECOM/Salvador)

Fabrício Veliq*
Recentemente, devido ao fechamento de empresas e estabelecimentos comerciais ao redor do mundo em decorrência do novo coronavírus (Covid-19), levantou-se oposição entre economia e vidas humanas. Em resumo, questiona-se: vale a pena deixar todas as pessoas em casa para evitar a disseminação do vírus e acabar com a economia de um país?
Os argumentos dos favoráveis à volta da normalidade se concentram na ideia de que um país parado não gera riqueza. Consequentemente, seus cidadãos não terão as necessidades básicas supridas, a economia entrará em colapso e milhares de pessoas morrerão do mesmo jeito, de maneira que a escolha é entre morrer por causa do vírus ou da falta de mantimentos.
Que esse argumento venha da parcela rica da população não é de se espantar. Afinal, ela depende totalmente dos trabalhadores para geração de sua riqueza, algo que Marx, no século 19, já mostrava de forma bastante clara com seu conceito de mais valia e análise do capitalismo de então.
Ao mesmo tempo, diversos economistas têm mostrado que essa dicotomia é uma “aberração ética e impostura científica” (vide Manifesto dos Professores de Economia da Face/UFMG, 2020). Além disso, atestam que a intervenção do Estado como provedor da subsistência e auxílio das pessoas mais necessitadas é imprescindível em momentos de crise. Ele deve começar suas ações, como pontua o Manifesto, provendo renda básica à população vulnerável, aumentando o investimento na saúde pública, ampliando o período do seguro desemprego, isentando as populações de baixa renda do pagamento de água e luz, dentre várias outras que visam, justamente, minimizar os danos causados pelo isolamento necessário para que mais pessoas não morram.
Do ponto de vista da teologia cristã, é um ultraje que se ponha a economia à frente de vidas. O texto bíblico, bem como o testemunho de Jesus Cristo, sempre mostrou que as pessoas são mais importantes que as coisas. Tudo o que é humano e que possui vida vêm acima das coisas inanimadas. O dinheiro, o lucro dos bancos e dos empresários, os dividendos pagos aos que especulam nas bolsas de valores nunca devem estar acima da dignidade e valor da vida humana.
Nesse sentido, quem propõe a questão de escolher salvar a economia ou as pessoas não compreendeu em nada a proposta cristã e a mensagem do Evangelho. O mesmo tipo de reflexão não se aplica somente ao cristianismo. O princípio de que a vida humana não tem preço e que nada, em nenhum momento, justifica sua morte está presente em diversas religiões.
Com isso em mente, como teólogos cristãos em um país majoritariamente cristão, onde a religião exerce um peso enorme na vida das pessoas, é nossa tarefa denunciar que colocar a economia, o ganho financeiro, a geração de capital e a manutenção do lucro acima da vida humana não é algo que vem da parte de Deus. Muito pelo contrário, trata-se de atitude anticristã e, portanto, diabólica.
Nesse sentido, é louvável a atitude de algumas igrejas em manter suas portas fechadas para evitar o contágio entre fieis. Por outro lado, é vergonhoso que igrejas neopentecostais façam lobby junto ao governo a fim de serem consideradas “serviços essenciais” para sociedade, o que todos sabemos ser mentira.
Diante disso, é importante estar atento às posturas adotadas por empresas, igrejas e instituições no momento atual. Muito mais que suas palavras, suas atitudes mostram o que lhes é mais importante, se a vida de seus fieis e funcionários ou se o lucro que podem gerar, mesmo que para isso seja necessário deixar pessoas morrerem.

*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), doctor of theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), bacharel em filosofia e licenciado em matemática (UFMG) E-mail: fveliq@gmail.com

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