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Rodolfo Teófilo já combateu epidemia em Fortaleza; relembre trajetória do farmacêutico e escritor

Radicado no Ceará, o multiprofissional, que também ganhou destaque como escritor, tomou para si a tarefa de enfrentar a varíola praticamente sozinho na Fortaleza do século XIX


Radicado no Ceará, Rodolfo Teófilo exerceu diversas ocupações, sempre pautando pelo pioneirismo
É famosa a história de Dom Quixote de La Mancha, clássico do francês Miguel de Cervantes (1547-1616). O herói está sempre caminhando entre a fantasia e a realidade, lutando pelo amor de uma mulher imaginária e transformando obstáculos banais, como moinhos de vento e ovelhas, em gigantes e exércitos de inimigos. O que talvez poucos saibam é que, em solo cearense, já houve uma importante figura que se equiparou a Quixote, embora guardadas as devidas proporções. O contexto era de instabilidade social e, mediante um trabalho de formiguinha, o panorama mudou.
Rodolfo Teófilo (1863-1932) – baiano de nascença, mas cearense porque queria, conforme costumava afirmar – era um misto de cientista, industrial, farmacêutico e divulgador científico. Tomou para si a tarefa de enfrentar, praticamente sozinho, a epidemia de varíola que acometeu a capital alencarina na segunda metade do século XIX. Nesse processo, venceu a resistência da população, sendo inclusive perseguido pelo governo estadual – sob o comando de Antônio Pinto Nogueira Accioli – emergindo, assim, como um curioso caso para pensarmos nosso hoje diante da pandemia do novo coronavírus.
Maiores detalhes sobre essa verdadeira odisseia do farmacêutico são reconstituídos no livro “O poder e a peste – A vida de Rodolfo Teófilo”, publicado em 1999. É o primeiro assinado pelo escritor e jornalista cearense Lira Neto. Em entrevista ao Verso por e-mail, ele conta que a inspiração para tecer a narrativa iniciou cinco anos antes de o título vir a público. 
À época, aconteciam as obras do serviço de saneamento básico de Fortaleza, Sanear. Lira era repórter e recorda de ficar chocado com as imagens que os colegas fotógrafos traziam para a redação. Eram centenas de esqueletos humanos, desenterrados na Jacarecanga, pelos operários que trabalhavam na abertura das valas para a canalização dos esgotos. 
“Quando descobriu-se que aqueles restos humanos eram as vítimas de uma terrível epidemia de varíola que matou um quinto da cidade de Fortaleza, fiquei intrigado: como, decorridos apenas um século da tragédia, havia um total desconhecimento do episódio por parte de nós, fortalezenses?”, conta o jornalista. “Pesquisei o assunto e encontrei na trajetória de Rodolfo Teófilo o fio condutor narrativo para tratar de temas como esquecimento e memória”.

PROTAGONISMO

Filho e neto de médicos, o protagonista do livro cedo ficou órfão, tendo de trabalhar como caixeiro para o próprio sustento. Chegou ao Ceará com um mês e meio de idade, retornando depois para Salvador a fim de se graduar em Farmácia, pela Faculdade de Medicina da Bahia. Novamente em solo cearense, Teófilo participou ativamente da campanha abolicionista e tratou de morar em Pacatuba – município onde, junto à esposa, Raimundinha, ajudou a libertar os cativos, e abriu uma farmácia.
Quando se estruturou financeiramente, foi para Fortaleza e instituiu outra farmácia, dessa vez no centro da cidade. Era a mesma capital que, anos depois, teria um bairro com o seu nome e seria palco para as atitudes que tomaria quando da disseminação da varíola.
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"O poder e a peste" foi o primeiro livro publicado por Lira Neto, contando a história de Rodolfo Teófilo
Logo no começo de “O poder e a peste”, Lira Neto narra: “Anos a fio, correu os quatro cantos de Fortaleza, batendo de porta em porta, aplicando as doses de vacina que fabricava em casa. Com dinheiro do próprio bolso, sem nenhum apoio das autoridades, montava a cavalo e, todas as manhãs, saía com novo carregamento de vacinas em direção às ‘areias’, como eram conhecidos os bairros pobres da cidade”. 
Assim, a obra é mais que a biografia de um homem, mas a radiografia de Fortaleza entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Segundo Lira, foram quatro anos de intensa pesquisa. Entre um dado e outro, para além das surpresas no caminho, o que ficou com ele foi uma “constrangedora constatação”. 
“Descobri a enorme ignorância coletiva – inclusive minha – sobre nossa própria história, mesmo a mais recente”, confessa, situando que, a priori, Rodolfo Teófilo era apenas o nome de um bairro da Capital, para ele. Depois, surgiria como um homem de seu tempo.
“Seu voluntarismo e atitudes, para o bem e para o mal, eram ditadas pelas circunstâncias de sua formação científica, bem calcada no século XIX. Era representante de uma elite intelectual e, ao mesmo tempo, alguém preocupado com a esfera pública. Era um eugenista – criticava a miscigenação, por exemplo, que julgava ser a origem de nosso ‘atraso civilizacional’ – , mas isso não o impediu de liderar uma campanha aparentemente quixotesca (e, ao final, bem sucedida) contra a varíola”.
Uma cruzada, que envolvia o tripé ciência, higiene e a divisa da “mente sã em corpo são”. Enquanto isso, os adversários dele eram administradores que desdenhavam do compromisso social devido à população. No olhar de Lira, Rodolfo Teófilo é um grande pioneiro da saúde pública no Brasil e que, por ter vivido e agido em um Estado periférico, teve o nome apagado pela mesma lógica perversa que trata como “história regional” todo e qualquer acontecimento que não tenha ocorrido nos grandes centros hegemônicos, como Rio de Janeiro e São Paulo.
“Compare-se, por exemplo, Rodolfo com Oswaldo Cruz. No fundo, partilhavam das mesmas ideias e propósitos, com uma grande diferença a separá-los. Um, Oswaldo, tinha o aparato do poder federal à sua disposição. Outro, Rodolfo, lutou contra a peste, mas também contra o poder estabelecido – daí o título do livro. Um, Oswaldo, impôs a vacinação obrigatória e provocou grande convulsão social. Outro, Rodolfo, lutava com as armas da persuasão, do conhecimento, em uma época na qual a vacina era uma descoberta relativamente recente, desconhecida e, por isso, temida por muitos”, contextualiza o biógrafo.
E completa: “Creio que Teófilo, mesmo com todas as contradições que encarnava, pode ser olhado como um apóstolo da ciência, do saber especializado, da sensibilidade social. O que não me parece pouco numa época como a nossa, em que cresce assustadoramente as manifestações da ignorância vaidosa de si mesma, o autoelogio da grossura, a negação da cultura, a agressividade do mais atroz obscurantismo”.

ENTRE PALAVRAS

Mas não foi somente pela atuação na área sanitarista que Rodolfo Teófilo ganhou destaque. Envolvido em vários ofícios, empenhou-se também na escrita. Charles Ribeiro, professor de Literatura e Doutor em Letras pela Universidade Federal do Ceará, pesquisador de Literatura cearense e Literatura Comparada, explica que a capital cearense é retratada em diversos artigos, crônicas e textos memorialísticos do autor, sobretudo no romance de estreia, “A fome”, onde a cidade é descrita minuciosamente a partir das transformações urbanas, que ocorriam desde o século XIX. 
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foi o número de obras publicadas por Rodolfo Teófilo, abordando os mais variados temas. Considerado o fundador do regionalismo naturalista no Ceará, o autor usava a literatura como meio de combater as injustiças que presenciou
Tanto é que, no âmbito literário, o maior mérito dele foi inaugurar o regionalismo naturalista em nosso Estado, trabalhando com temas que seriam explorados pelos romancistas brasileiros da década de 1930: cangaço, seca, fome, latifúndio, coronelismo etc.
“Ele se utilizou da metodologia do romance experimental e a usou para estudar e denunciar as mazelas do cearense. Tornou-se um dos mais representativos escritores dos romances da seca de sua época, constituindo-se como precursor e como uma das principais influências de Rachel de Queiroz, que o chamava carinhosamente de ‘meu avô’”, observa.
No total, foram 28 obras publicadas, abordando diversas temáticas. Entre elas, estão História das secas no Ceará (1883), Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897), O Paroara (1899), Violação (1898), e outras. “Ele atuou ainda em várias agremiações literárias e científicas, como o Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, o Clube Literário, a Padaria Espiritual, o Centro Literário, e a Academia Cearense de Letras, tendo sido depois escolhido como patrono da cadeira nº 33”.
Em suma, o escritor usava as letras para demonstrar o repúdio aos males e combater as injustiças, tendo que lutar, inclusive, contra a tradição literária de seu tempo. Não à toa, segundo Charles, ao tentar imaginar como Rodolfo se comportaria frente às atitudes de determinadas autoridades públicas do País quanto ao combate ao novo coronavírus, afirma: “Como um intelectual formado, tendo como valores principais o racionalismo e o cientificismo, e como farmacêutico e sanitarista, é óbvio que ele só apoiaria ações que fossem calcadas em evidências científicas. Mesmo se ações governamentais, em sua interpretação, não fossem condizentes com os preceitos científicos, faria oposição veemente”.
> SAIBA MAIS
Inventor da cajuína
Há uma curiosidade interessante acerca da trajetória de Rodolfo Teófilo. Em artigo intitulado “Rodolpho Théophilo (O polivalente polêmico)”, de Ednilo Gomes de Soárez – membro do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará – consta que o multiprofissional inventou a cajuína, famosa bebida cuja criação geralmente é associada ao Piauí.  
No texto, o autor menciona que, em 1908, Rodolfo ganhou a Medalha de Ouro numa exposição nacional do Rio de Janeiro pela excelente qualidade da iguaria líquida, por ele criada e produzida. A cajuína foi inclusive registrada na Junta Comercial do Estado, conforme atestam documentos históricos. Além do artigo, o livro “O Ceará”, de Raimundo Girão e Antônio Martins Filho, e o próprio “O Poder e a Peste”, de Lira Neto, chancelam a invenção do prolífico homem.
Diário do Nordeste

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