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Bienal Fora da Bienal na Praça do Ferreira

A Bienal e os moradores de rua: escritora Kiusam de Oliveira semeou histórias, força e esperança na noite de quarta na Praça do Ferreira


Foto: Paulo Winz
Eram os mesmos bancos da Praça do Ferreira. Eram os mesmos moradores que fazem da praça seu abrigo, em busca da luz que se faz sinônimo de segurança e acolhida. Eram os mesmos leitos e lençóis feitos de papelão, dentro da noite que se demora até que venha o mesmo sol — aquele não tão bonito pra quem vive na rua. Em um canto da praça, os mesmos voluntários a oferecer um prato e uma palavra, para reconforto de quem encontra no piso de pedras portuguesas e nas marquises das lojas os limites de seu lar.
Mas a noite não foi a mesma. Com o respaldo e a sinceridade de quem por mais de dez anos dialogou com pessoas em situação de rua em São Paulo, Kiusam de Oliveira, escritora, atriz, dançarina, contadora de histórias, artista multilinguagens professora da Universidade Federal do Espírito Santo, se chegou para trazer histórias de outros mundos, de uma vida diferente e, ao mesmo tempo, de um viver de preconceitos e desafios tão iguais àqueles enfrentados todos os dias pelos protagonistas dessa história.
Confira vídeos de trechos da conversa na Praça do Ferreira:

“Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”, ensinou outro poeta negro. Pois as pesquisas de Kiusam demonstraram que é exatamente assim que muita gente se surpreendeu ao se ver na condição de morar na rua. Pessoas que perderam o emprego em fábricas de automóveis no ABC Paulista. Famílias despejadas por não mais poderem cumprir o vencimento irrecorrível do aluguel. Acomodadas em casas de parentes, até que as dificuldades de convivência impõem um prazo, um limite, uma sentença. O jeito é ir pra rua. De alma menos encantadora do que aquela cantada pelo poeta João do Rio. Vielas, descaminhos, praças, mobiliário urbano… Aquilo que é apenas cenário para tantos e que se torna um lar, para tantos outros.
Foto: Paulo Winz
“A minha história é talvez igual à sua… Jovem que desceu do Norte e que no sul viveu na rua…”, cantou Belchior. “Como é se sentir sozinho, sem caminho de casa, um completo desconhecido, como uma pedra que rola? Como é ter que implorar por uma refeição? Depois de ter sido educado nas melhores escolas, como é que ninguém te ensinou a viver na rua? Como é que é não ter nada, e não ter nada a perder”, entoou Dylan. Prêmio Nobel na tradução de realidades e sentimentos.
As mais de cem pessoas que costumam passar a noite na Praça do Ferreira receberam de Kiusam generosas histórias sobre o Senegal, um dos países visitados pela autora que, ao lado de Julio Lira (coordenador da bienal Fora da Bienal, que abriu a noite exibindo em um telão fotos de Fortaleza antiga, provocando a memória e o simbólico de cada participante), pediu licença para entrar no mundo desses outros moradores de nossa Fortaleza, onde um baobá se impõe e mobiliza olhares no Passeio Público. Assim como os muitos baobás do Senegal, descortinados pela autora, com sua fala a um tempo acolhedora e instigante: do baobá tudo se aproveita; da árvore feita de água por dentro, fonte preciosa em terrenos e épocas de sede; um ser vivo milenar e sagrado.
“Os baobás são gigantes e milenares. Conheci baobás de cinco mil anos de história, ainda vivos. Depois que a água seca, as pessoas fazem restaurantes, banheiros, locais de convivência da população, dentro dos baobás. Como este, aqui do Passeio Público de Fortaleza, que conheci em outras viagens”, disse, ao contar coisas de sua infância, de sua forte relação com as árvores, a partir da que havia no quintal de sua casa, refúgio para os momentos de desentendimento com a mãe. Subia na árvore, dormia na árvore, lia histórias na árvore.
Foto: Paulo Winz

O preconceito e os tambores do mundo

Sobre a experiência no Senegal, Kiusam de Oliveira compartilhou o choque de ver de perto resquícios da estrutura que por séculos a fio alimentou a escravidão. “Quando na escola a gente aprende que os negros foram escravizados, isso é muito distante”, comentou, voltando ao baobá. “Na áfrica as árvores são muito valorizadas, como se fossem anciãos, seres de um conhecimento mais profundo”.
Foto: Paulo Winz
A motivação por conhecer a África também veio dos tempos de infância, quando lhe saltava aos olhos a falta de personagens negros nas histórias dos livros infantis. Como “O Pequeno Príncipe”, que ela leu e releu um sem-contar de vezes, e no qual a referência à África lhe aguçou o encanto e a curiosidade. “Aquilo mexeu muito comigo. A partir dali comecei a pesquisar autores africanos”.
Outro ponto abordado foi o preconceito contra um dos símbolos do Senegal, o djembê, um tambor. “Os tambores do mundo ainda são vistos com muito preconceito”, disse, sob concordância do povo da praça. “É verdade. Aqui tem aquelas festas no Mucuripe e tem espaço pra católico, pra evangélico, mas não tem espaço pro pessoal dos tambores. Algumas pessoas não gostam”, relatou.
“O tambor tem essa ligação ancestral e muitas vezes é o toque de resistência. Assim como berimbau era o toque nos quilombos pra avisar quando vinha o capitão do mato, o djembê também é um toque de resistência”.

Black power: as palavras têm poder

Foto: Paulo Winz
Outra história contada por Kiusam, com seu jeito hábil e sensível de chegar às pessoas, ora pedindo para colocarem sobre sua cabeça uma flor imaginária, ora se dirigindo a um e outro na roda em especial, foi de seu livro “O mundo no black power”, sobre uma menina negra, com penteado “black power”, a partir da qual a autora trabalhou temas como afirmação da identidade negra e da ancestralidade. O significado e a origem do famoso gesto de levantar a mão com o punho fechado foram revelados por Kiusam, gerando comoção entre quem a acompanhava. Todos levantaram a mão e gritaram: “Black Power, Black Power!”.

Crianças, doces, esperança, livros e um abraço

Foto: Paulo Winz
Ao final, livros foram entregues aos participantes da atividade, escolhidos com atenção e distinguidos com uma mensagem escrita por Kiusam, para cada pessoa. Antes de ir, a escritora ainda teve sua atenção chamada por crianças, que a emocionaram ao com ela compartilhar doces que ganharam dos voluntários que levam sopa aos habitantes da praça. E por um jovem, com quem conversou mais detidamente, entre conselhos e referências à energia divina, “que pode ajudar a transpor qualquer momento de sombra, qualquer momento obscuro”.
Pensativo, o jovem se rendeu em um abraço que fechou a noite. Não como um contato entre estranhos, distantes, mas com o doce sabor de um reencontro de pessoas que se compreendem antes mesmo de se conhecer. Como disse um dos participantes, enternecendo a todos, “Todo sofrimento se transforma em magia”.
Acompanhe a cobertura fotografia completa da XII Bienal Internacional do Livro do Ceará , em nosso flickr. Acesse aqui.
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