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'Romance policial é o punk rock da literatura', afirma norueguês Jo Nesbø

Fabiano Maisonnave
OSLO (NORUEGA)
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O escritor Jo Nesbø, autor da série Hole e de releitura de ‘Macbeth’, em Oslo, Noruega - Tore Meek - 20.mar.17/NTB/AFP
Deu até para desconfiar que o escritor norueguês Jo Nesbø, 58, dispõe dos mesmos recursos investigativos do seu maior personagem, o brilhante detetive alcoólatra Harry Hole.
Diante do repórter flamenguista quarentão, ele irrompe no restaurante Bolgen & Moi vestindo uma camisa branca estampada com uma imagem retrô do Zico. A entrevista, em um atípico dia quente em Oslo, não poderia ter começado melhor.
O futebol é uma das paixões de Nesbø, que chegou a ser atacante profissional, carreira encerrada por uma lesão no joelho. Espécie de canivete suíço humano, é vocalista da banda pop Di Derre, já foi corretor de ações e jornalista, entre outras profissões.
Como escritor, tem no currículo livros infantis, uma série de TV e acaba de publicar uma caudalosa releitura da tragédia "Macbeth", de Shakespeare, que deve sair no Brasil até o início de 2019, pela Record.
Mas foi escrevendo romances policiais que Nesbø se tornou mundialmente conhecido. Desde "O Morcego" (1997), o primeiro livro da série Hole, ele já vendeu cerca de 40 milhões de cópias em todo o mundo —sete vezes a população do seu país.
Só no Brasil, foram comercializados 130 mil exemplares, segundo a editora Record. Seu livro mais vendido no país, "Boneco de Neve" (50 mil), ganhou uma adaptação aos cinemas no ano passado, protagonizada pelo ator alemão Michael Fassbender.
"Antes de mais nada, sou atraído pela contação de histórias. Tem sido assim em toda a minha vida e dentro da minha família. Não é que eu precisasse ser um escritor policial. Eu precisava contar histórias", afirma o norueguês.
De início, conta ele, a opção pelo gênero foi pragmática. "Tinha amigos que queriam escrever começando o grande romance europeu, mas nunca foram capazes de terminar seus projetos. Então sabia por experiência que era melhor começar com alguma coisa simples. Não será o melhor romance, mas será um romance para aprender o ofício."
Ao tirar cinco semanas de férias para se aventurar na escrita, Nesbø concluiu que o romance policial era a melhor opção. "Tinha de fazer algo que tivesse uma cabeça e um rabo, precisava de algo com estrutura."
"Mas, durante o processo, me dei conta de duas coisas. Primeiro, você é muito próximo do leitor quando escreve um romance policial. Eles fazem essa leitura interativa da sua escrita. É quase este diálogo: faço você ver a minha mão direita enquanto realizo o truque com a mão esquerda."
"Nesse aspecto, o romance policial é o punk rock da literatura. Porque não tem distância entre o palco e o público, eles estão quase no palco. Algumas vezes, estão no palco", compara, enquanto devora uma sopa de peixe.
O segundo motivo é a possibilidade de abordar temas que, para ele, estão fora de moda na literatura contemporânea.
"É possível abordar questões morais sobre certo e errado e em que medida você tem livre arbítrio, de que forma os seres humanos são responsáveis por seus atos. Não achei essas questões em outros livros, mas na melhor literatura policial."
O repórter faz uma pequena provocação, baseado em artigo recente do escritor Cristovão Tezza, nesta Folha: os psicopatas, a quem Hole persegue durante boa parte do tempo, não funcionam melhor no cinema do que na literatura?
Nesbø discorda. "Os psicopatas valem a pena. 'O Assassino em Mim' e '1.280 Almas', de Jim Thompson, escritos na primeira pessoa de um sociopata, são mais arrepiantes do que qualquer coisa que vi no cinema."
"No cinema e em muitos livros, o assassino em série é um tipo de metáfora, é o 'Tubarão' [filme de Steven Spielberg]. Eles não são importantes, não estão ali para contar uma história sobre o ser humano. Apenas representam um monstro, um espelho contra quem podemos medir nossa inteligência, nossa coragem."
"Tanto no cinema quanto no romance, quando você tenta explicá-lo, é quando o monstro não para em pé. Mas, em alguns romances, como os de Jim Thompson, ele faz ambos", diz. "Para mim, é possível construir o psicopata como uma pessoa com explicações ou apenas usá-lo como uma metáfora do monstro."
Sobre o futuro da série Hole —atualmente, Nesbø escreve o 12º livro—, o escritor afirma que ainda não se cansou do personagem.
"Claro, tenho de me perguntar: por que um nova história sobre Harry Hole? Fui corrompido pela popularidade do personagem? Acho que sou honesto comigo mesmo quando digo que escrevo sobre Harry porque considero o personagem verdadeiramente interessante, e isso ajuda a história. Mas nunca se sabe se você é 100% honesto ou corrupto."
Em tempo: Nesbø parece que é realmente flamenguista. Na visita mais recente ao Brasil, em 2014, perguntou a uma representante da Record se seria possível dar o pontapé inicial em uma partida do rubro-negro.
Folha de São Paulo

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