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Artesão de palavras

Tímido e discreto, Herman Pieter de Boer foi um grande lírico das palavras simples.

Por Lev Chaim*
Muitos são os desconhecidos famosos, mas tão pouco infelizes, tal qual o recém falecido holandês Herman Pieter de Boer, que compôs coisas sublimes para outros cantarem. Para o público em geral, uma música é de quem a canta e não de quem a escreve. É como se o compositor pusesse a mão acima da cabeça do cantor e dissesse: eu o protejo com a sombra da palma da minha mão!

O cancioneiro holandês Ramses Shaffy, por exemplo, também já falecido, foi um dos que teve a sua imagem gravada pela lírica deste compositor, Herman Pieter de Boer. Egípcio de nascimento, Ramses Shaffy veio para a Holanda menino novo. Sua mãe, à morte, colocou-o num trem do sul da França para a Holanda, afim de que ele fosse criado por uma família holandesa.  

Shaffy tornou-se famoso como compositor e cantor. Mas o seu retrato perfeito foi transmitido pela lírica de umas das músicas de Herman Pieter de Boer, escrita para ele: "Talvez tenha nascido tarde demais, em um país com outra luz. Sinto-me quase sempre perdido, embora o espelho reflita a minha imagem. Conheço bares e catedrais de Amsterdã à Maastricht... Deixe-me! Deixe-me seguir o meu caminho, o meu caminho como sempre o fiz".

Sem o lirismo elegante de um Tom Jobim ou a pretensão tímida e escolada de um Chico Buarque, Herman Pieter criou um mundo para si próprio, dividiu-o com os amigos e com toda a Holanda. Ele era por excelência o criador de canções para tornar os outros inesquecíveis.

Seu lirismo transpôs as fronteiras das línguas, mas é no holandês que ele transformou pedras em brilhantes. Em seu trabalho, a língua holandesa acabou perdendo a rigidez e aspereza, para tornar-se uma coisa suave, bonita, sentimental e profunda. E não tem língua mais gutural e áspera que a holandesa. 

Em seus versos, o holandês até parece a língua do amor e da solidão: “Ik ben misschien te laat geboren/ of in een land met ander licht. / Ik voel me altijd wat verloren, / al toont de spiegel mijn gezicht..”./ refrein: “Laat me, laat me, laat me mijn eigen gang gaan. Laat me, laat me, Ik heb het altijd zo gedaan!” (ouça o link abaixo da matéria)

Compositor e escritor nato, ou por vocação desde o berço, Herman Pieter de Boer fez um pouco de tudo. Por falta de planos, ele acabou no mundo da propaganda, escrevendo coisas que acabaram virando legendarias nos finais dos anos cinquenta. Foi ele que divulgou o estilo rápido e sucinto de propaganda, tornando-o mais eficaz. Vejam só: “Chame-nos, viremos! Entendimento e trabalho rápidos”.  Precisa mais simples?

Ao curar-se de um alcoolismo, Herman Pieter de Boer  prometeu a si próprio nunca mais trabalhar no setor de propaganda. Passou então a escrever livros. E nesta área, ele também se tornou um best-seller, tal qual o seu original livro, com desenhos de Pat Andrea: "O novo livro holandês para a língua dos sinais".

Em 1969, ele começou a compor canções que tornaram-se sucessos na boca de outros. Como autor, ele ficava sempre na sombra. Um dos seus melhores anos como poeta-escritor de canções foi 1980, onde ele compôs duas canções vencedoras do concurso infantil: “Kinderen voor kinderen (Crianças para Crianças).

Herman Pieter de Boer, de acordo com o necrológico do jornal NRCHandelblad, via a si próprio como “um artesão de palavras”. Tímido e discreto, ele se tornou um grande lírico das palavras simples, exatas, mas bem colocadas. Com isto, homenageio também todos os desconhecidos famosos, que nunca brilharam num palco.

Herman Pieter de Boer foi um desses espíritos que nasceu para iluminar o caminho de outros. Com suas criações originais, ele juntou palavras que se tornaram célebres na Holanda. Ele morreu em 2014, aos 80 anos de idade.

Suas músicas, quando tocadas em festivais, são cantadas por milhares e milhares de pessoas, numa catarse libertária de uma época, onde quase tudo valia, até mesmo ser feliz em primeiro lugar e depois vinha o dinheiro. Uma ótima semana para todos vocês. Tchau! 

Confira o vídeo da música "Laat me", composta por Herman Pieter de Boer: 

*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Dom Total.

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