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Ninfomaníaca: um filme sobre a vida

 domtotal.com

Quem pensou numa solução para o terrível dilema do primeiro filme, se enganou. Veio mais do pior.

Por Bernadete Flores Bestane*

Terceiro filme da chamada Trilogia da Depressão – os dois anteriores são Anticristo (2009) e Melancolia (2011) –, conjunto de obras que retratam confessadas fases melancólicas do cineasta dinamarquês, Ninfomaníaca, para decepção de muitos que acorreram às salas atendendo à estrondosa chamada, está definitivamente mais para Marquês de Sade do que para Cinquenta Tons de Cinza, o “mommy porn” que encantou os românticos com sua mocinha masoquista e seu príncipe milionário sádico, tão acordante com as fantasias sexuais mais credenciadas pelo sistema e até pelo politicamente correto.

Uma das maiores ousadias de Freud foi ver um sentido no até então desprezado discurso das histéricas, considerando que mesmo as mentiras trariam em si uma lógica, que, articulada, poderia produzir um saber sobre o sofrimento que afligia suas pacientes no final do século 19. Transformou, assim, uma fala desdenhada em matéria-prima para o estudo das relações mais íntimas e privadas da constituição do sujeito.

O filme Ninfomaníaca pode ser visto sob esse ponto de vista. Joe, a protagonista, é encontrada por um homem, Seligman, à noite, sangrando na neve, em um beco, imagem por si só de sofrimento e de abandono sem igual. Pede apenas um chá com leite, e é na casa dele, acomodada em uma cama, que passa a relatar sua vida. Em cena que evoca uma sessão de psicanálise, o homem, amigavelmente, vai transpondo o discurso autodestrutivo e implacável da protagonista em metáforas da atividade da pesca, da música, da religião, buscando uma lógica para o que é confessado com dor e mortificação. Segue-se a história de uma ninfomaníaca e as imagens correspondentes ao que é narrado. Através dessa narração episódica, transparece uma visão do mundo. Há um saber no discurso da ninfomaníaca, uma tese, um doloroso saber sobre a vida.

O exagero da repetição das cenas de sexo e o exercício de suas variadas modalidades, muito mais do que excitante, é perturbador. Lars von Trier se serve sem cerimônia da sexualidade para significar o aspecto mais trágico da existência, o vazio primordial que, para Freud, inaugura o inconsciente e é entendido como condição universal da fundação do sujeito. No filme, o excesso erótico e sua ausência de sentido existem para produzir um correspondente deslocamento essencial, um vazio oposto a qualquer certeza construída. Ninfomaníaca busca desestabilizar o espectador.

A propaganda do filme é enganosa, feita meticulosamente com antecedência, com estardalhaço típico do mundo de consumo, como a dizer: venham, venham, venham para o circo. Mas o circo é de terror, isso ninguém avisa. O gozo é mortífero, vazio, contrapondo-se, rigorosamente, às estratégias contemporâneas de vender o sexo como algo alegre e libertador.

A sexualidade exacerbada formata o horror tão humano, de viver, de desejar sempre, de estar vivo sem saber o porquê, típico da filosofia niilista comungada pelo diretor. A melancolia pelo indecifrável da vida. Todas as Weleidades caem por terra diante da solidão e do corpo exausto e eternamente desassossegado da protagonista, retratada no filme como uma grande fera enjaulada, girando sobre si mesma. Ela e todos nós, parece afirmar o polêmico cineasta.

Os tons de delicadeza (sim, eles existem!) estão restritos – sugestivamente, penso eu – ao encontro de Joe com o intelectual que a acolhe e também na relação com seu pai, que inicia a protagonista na observação da natureza e de suas lições, sempre belos momentos do filme. Parece haver nas cenas da protagonista com esses dois personagens um alívio, um bom sentido, uma via de saída para o tenebroso impasse de Joe com seu corpo eternamente entregue ao desejo. Desejo de morte, no caso.

Haverá esperanças na arte, na intelectualidade ou na contemplação da natureza, como parece insinuar mais significativamente Ninfomaníaca – Vol. 1?

No volume 2, a questão é ainda mais embaixo. Joe segue narrando a história de sua vida, sua busca irrefreável de satisfação sexual, a entrega cega ao sadomasoquismo, a ponto de levá-la a abandonar o filho.

O que surpreende é o final. Von Trier faz uma inversão de valores nos últimos momentos, uma inversão que diminui em muito as chances de quem espera a salvação, seja de Joe, seja da humanidade. Ficamos na mão de Joe e não sabemos bem se seu último discurso se concretizará, pois Joe, a devassa, pela primeira vez na vida profere um discurso construtivo sobre si mesma. Enxerga a beleza do sol nascendo, reconhece-se como viciada em sexo, faz planos para uma cura cuja possibilidade enxerga a partir do ato de relatar sua história para alguém, e pede ao homem que se vá, pois quer dormir.

Aqui, o que no fundo temíamos, nós, os de boa vontade, acontece. Seligman, nosso impassível e digno ouvinte, de quem esperamos tanto, se desintegra, mostra sua sórdida humanidade. Cabe-lhe perfeitamente um tiro. O final resgata, à moda de Lars von Trier, a dignidade estilhaçada de Joe. Essa que aponta, com o corpo retalhado, a hipocrisia da sociedade humana.
Zero Hora, 12-04-2014.
*Bernadete Flores Bestane é especialista em Literatura pela UFRGS e em Linguística pela UFSM.

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