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O privilégio do rei

19/11/2014  |  domtotal.com

O Brasil, em vista de sua tradição e cultura jurídica, é um país onde se dá ao privilégio um status quase religioso.

Por Alexandre Kawakami*

Já devo ter falado sobre isso anteriormente mas vale a pena relembrar. Dentro dos estudos de Economia existe um ramo chamado Escolhas Públicas cuja premissa é relativamente óbvia: se a Economia é o estudo das ações humanas, esse estudo se aplica a qualquer objeto resultante de tal ação, seja ele o mercado de ações, os efeitos das taxas de juros ou outros fenômenos que tradicionalmente excluíamos deste estudo, tais como as decisões tomadas por agentes revestidos de caráter público.

Tradicionalmente, evitávamos excluir estas últimas ações da análise econômica porque tal análise parte de um princípio sobre o qual refletimos um certo juízo de valor: em condições normais de temperatura e pressão, o indivíduo, agente da ação humana, tomará decisões que lhe são vantajosas dentro do seu cálculo. O julgamento que fazemos deste princípio é o de que a ação humana é por natureza egoísta. Como as ações de caráter público têm, por ideal, uma pretensão de terem como motivadoras o interesse do maior número de pessoas, acreditávamos que não cabiam no conceito de ação econômica.

Entretanto, a Teoria das Escolhas Públicas veio a quebrar este tabu, mostrando a todos que os agentes públicos são tão “egoístas” em suas decisões como qualquer um de nós.

Um exemplo recente ajuda a ilustrar e reforçar esta noção. Um juiz do Rio de Janeiro, aparentemente embriagado e sem estar portando sua carteira de habilitação é parado em uma blitz e tem o veículo apreendido, além de ser encaminhado para a delegacia competente. Usando das competências que a função lhe concede de forma questionável, ao invés de reconhecer seu erro, dá voz de prisão à autoridade fiscalizadora por desacato.

Até este momento, pode-se dizer que este juiz é individualmente a exceção à regra. Mas tendo sido o caso levado à justiça, seus colegas juízes, também em nível recursal, mantêm o julgamento de desacato arguido pelo juiz, impondo à fiscal uma multa muito superior a seu rendimento mensal.

Para os juízes que julgaram este caso, a ação da autoridade fiscalizadora caracterizada como desacato (dizer que o juiz em questão era “juiz, e não Deus”) era ofensiva à figura do magistrado. Para nós, cidadãos comuns, a mesma ação era não só compreensível mas imbuída de certa justiça. Mas a teoria das Escolhas Públicas é bastante relevante e apropriada para o estudo deste cenário: como ela preveria, o órgão julgador decidiu de acordo com o que os seus membros julgam apropriado e inapropriado. E para eles, juízes, o comentário não foi apenas infeliz, mas por natureza ilegal e criminoso. Ainda que para todo o resto das pessoas que não são juízes, tal comentário tenha sido sequer deselegante.

É por saber que o ser humano age como ser humano em qualquer situação que economistas afiliados às conclusões da teoria das Escolhas Públicas defendem dois parâmetros para a construção de leis: primeiramente, que a lei confira o mínimo de privilégios possível, uma vez que é inevitável que tais privilégios sejam usados de forma injusta.

Segundo, que exista dentro de nosso ordenamento legal um mecanismo de controle dos agentes públicos que seja imparcial e perene. Daí perceberem institutos como a divisão dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a superioridade das leis constitucionais, os procedimentos recursais e outros como avanços importantes na construção de civilizações mais iguais e livres.

O Brasil, em vista de sua tradição e cultura jurídica, é um país onde se dá ao privilégio um status quase religioso. Neste país, o instituto do desacato é usado por nossas autoridade com liberalidade preocupante. Tal privilégio, idealmente, só poderia ser convocado quando usado à serviço das pessoas que lhe conferem. Hoje, entretanto, é expressão de uma divisão entre os que se apropriam da lei e os que deveriam se beneficiar dela.

Os analista econômicos da lei, entretanto, têm uma solução para este dilema: construir um sistema onde tais privilégios só podem ser utilizados mediante um preço. Isso obriga os portadores destes privilégios a usarem de mais cuidado e diligência, além de terem, de fato, um interesse real em cada decisão que emitem. Este é o tema de meu próximo artigo.
*Alexandre Kawakami é Mestre em Direito Econômico Internacional pela Universidade Nacional de Chiba, Japão. Agraciado com o Prêmio Friedrich Hayek de Ensaios da Mont Pelerin Society, em Tóquio, por pesquisa no tema Escolhas Públicas e Livre Comércio. É advogado e consultor em Finanças Corporativas

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