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A RENÚNCIA À OBJETIVIDADE DA NOÇÃO DE “JUSTIÇA” E SUAS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS (PARTE 1 DE 2).

O anseio para “estar ao lado dos oprimidos” e “derrubar as ideologias das classes dominantes” pode esconder apenas um projeto totalitário de poder ocultado por um discurso sedutor de “resistência à opressão” e embalado numa capa de falsa profundidade filosófica.
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Photo Taken By Morio
Ainda ontem, numa conversa aqui no trabalho, ouvi um colega – que se tem por bom jurista e filósofo – desprezar em alta voz a noção de “justiça”. O direito é uma ciência, dizia ele. As ciências são, por definição, alheias aos juízos de valor, que são, na concepção vulgar, exatamente o que se chamaria de “justiça”. Assim, dizia ele, a justiça é apenas uma palavravazia, para esconder a imposição social dos interesses de uns sobre os interesses de outros. Um grupo social que seja poderoso o suficiente seria capaz de utilizar-se da palavra “justiça” para impor aos outros grupos sociais os seus próprios interesses, os seus própriosvalores, convence aos demais, destituídos de voz e poder, de que suas pretensões têm objetividade e valor universal. Não há justiça, há apenas a imposição de interesses pelopoder. E todo mundo que usa a palavra “justiça”, dizia ele, está tentando apenas encobrir seus próprios interesses, ou os da sua classe, com um manto de respeitabilidade. “Ocorre”, continuava ele, “que estamos há tanto tempo sob o domínio dos mesmos grupos políticos e econômicos que inconscientemente introjetamos as concepções de ‘justiça’ deste grupo como se fossem valores universais capazes de ser expressados por uma palavra bonita e tão carregada de sentimentos positivos como a palavra ‘justiça”. “Desmascaremo-la”, convidava ele. “Ela não representa senão uma hábil tentativa de manipulação ideológica”.
Mas, segundo ele, as classes menos favorecidas estão, há tanto tempo, impregnadas desse discurso dominador, que não percebem que, sob o manto da palavra “justiça” esconde-se uma dominação tão forte que impede os dominados de perceberem que seus próprios interesses estão sendo escamoteados como inexistentes ou insignificantes perante os interesses daqueles que têm o domínio ideológico da linguagem. Os dominantes, argumentava ele, me impõem seus próprios valores particulares como universais. Caberia a nós modificar esta situação através de uma manipulação contrária: embora saibamos, entre nós, que a palavra “justiça” no fundo não significa nada, vamos usar essa palavra “justiça”, com toda sua carga emocional positiva, para movimentar o povo contra as classes dominantes.
Se não há algo como o justo e o injusto, por que seria justo ficar ao lado dos oprimidos?
Não consigo concordar com você”, respondi. Se não há nada na palavra “justiça” além da manipulação ideológica dos “valores” de alguns em detrimento dos interesses de outros, então por que eu concluiria que manipular os interesses de outros seria injusto? Ora, se você declara que a palavra “justiça” não tem outro conteúdo além deste, deve necessariamente concluir também que “injusto” também é uma palavra desprovida de conteúdo, e que, portanto, a conduta de pregar os valores da classe dominante ou da classe dominada são, ambas, condutasindiferentes em si mesmas. Trata-se, portanto, apenas deoptar por um dos dois lados e manipular o outro, seja pela retórica, seja pela violência, para fazer prevalecer os próprios interesses com, sem ou contra os interesses do outro. A única opção que teríamos seria de uma dominação contra outra, e tudo se resumiria, afinal, a ter mais ou menos poder para impor ou convencer os demais sobre os interesses próprios. Na falta de um critério que determinasse qual dos interesses é o mais justo, opoder se justificaria por si mesmo. “Isto é inaceitável para mim”, afirmei. “Porque é autocontraditório!”
“É claro que não”, respondeu-me ele. “Trata-se aí de denunciar uma opressão e fazer prevalecer o interesse dos oprimidos contra a classeopressora. Esta é a missão daqueles que são capazes de desmascarar estes discursos ideológicos, como os que se escondem sob a palavrajustiça”.
Mas eu retruquei que isto mais uma vez não me pareceu claro nem consistente. De fato, mais uma vez vejo aí uma grande contradição: assumida a ideia de que a palavra “justiça” não pode descrever nenhuma realidade universalmente pensável, então exatamente por qual motivo este desmascaramento é necessário? Vale dizer, se não há como estabelecer nenhum conteúdo válido e inteligível para a palavrajustiça, nem para sua antípoda, ainjustiça, qual a razão para que eu tome o partido dos oprimidos contra os opressores?
Se, segundo pensa meu interlocutor, os interesses de ambos os grupos (ou de quaisquer grupos sociais) representa apenas o reflexo da suaprópria visão de mundo e de sua disputa pelo poder, o que me impediria de buscar apenas fazer prevalecer os meus própriosinteresses, ou de meu grupo mais próximo, manipulando os outros para que pensem que estou a defender a implantação de uma “justiça” em favor de presumíveis oprimidos contraopressores injustos, quando, por não acreditar desde o início que algo como a “justiça” pudesse sequer existir, eu estivesse buscando apenas instalar-me na confortável posição deimpor meus próprios interesses pessoais? Neste caso, quando eu me apropriasse das “estruturas de poder” que, segundo ele acredita, são apenas mistificadoras e manipuladorasde um conceito hipócrita de justiça que por definição não pode nem existir, o que me impediria de passar a usar estas estruturas para impor, como “justas”, minhas próprias pretensões a toda a sociedade? Eu nem sequer me consideraria injusto ao fazê-lo, porque eu não acredito, nesta hipótese, que injustiças existam!
Se a noção de “justiça” é apenas a expressão de um encobrimento ideológico, toda suposta luta contra a opressão não passa de uma luta dissimulada pelo poder!
Assim, alguém que declare, de saída, que a justiça nada mais é do que um encobrimento ideológico de a defesa de interesses particularesou de classe, e em seguida comece a proclamar a necessidade de desmascarar a classe dominante, faz isto em contradição com aquilo que acabou de afirmar: se não há algo como a justiça, também não pode ser injustoque alguém domine alguém. Trata-se apenas de uma questão de poder: injusto, para quem pensa assim, é apenas quando eu, ou o meu próprio grupo, não estamos no poder. Em suma, para quem pensa assim, liberdade é quando eu e meu grupo mandamos. Ditadura é quando gente de outro grupo manda em mim!
E mais, se acredito de fato nisto, considero-me então autorizado a lutar com todas as armas pelo poder, a fim de manipular a própria palavra “justiça” e poder impor aos outros meus próprios interesses, ou do meu grupo, como “justos”, sabendo que esta é apenas uma palavra vazia, mas de forte poder ideológico e paralisante para os demais. Vale dizer, negar conteúdo à palavra justiça, limitando seu valor ao ideológico, representa apenas o discurso de um candidato a ditador!
E mais, de um ditador que é capaz de incorporar com toda a sinceridade o discurso ideológico de ser “a favor dos oprimidos”, ou da “justiça social”, sabendo no seu coração que isto tudo não passa de manipulações para alcançar o poder e neutralizar o outro, legitimando-se perante a sociedade. E ainda sentindo-se um grande “combatente social” e “desmascarador de opressões”. Isto geraria apenas um governo que convence a si mesmo de que está ao mesmo tempo acima da justiça (na qual não acredita nem em tese) e ao lado dos oprimidos (mesmo declarando implicitamente que a opressão não é, em si mesma, nenhuma injustiça, porque, afinal, não existe nenhuma justiça!). Um governo assim estenderia suas garras ideológicas a toda sociedade, para perpetuar-se no poder (já que qualquer governo de outro grupo apenas implicaria que outros interesses que não o seu ou de seu grupo prevaleceriam, situação em que gritariam rapidamente as palavras de guerra “injustiça” e “opressão” contra os seus adversários, apenas para manipular o povo) e para gozar livremente de todos os seus interesses, ainda que envolvam o enriquecimento pessoal sem causa, o favorecimento aos seus amigos e aliados, nacional e internacionalmente, o uso dariqueza comum para a perenização do seu próprio projeto de poder e a destruição de grupos rivais ou independentes pela doutrinação ideológica, destruição moral e mesmo pela violência física – o que não seria, para eles, injusto, pelo simples fato de que eles negaram, desde o começo, que “justiça” ou “injustiça” sequer existissem.
O poder deste discurso, mesmo frende a setores da Igreja.
Se isto não é um projeto totalitário de poder, fundamentado numa suposta “negação filosófica” de qualquer valor à noção de “justiça”, seguida da manipulação deste termo em prol dos supostos “interesses dos oprimidos” identificados com seus próprios interesses particulares, e ainda descartada qualquer possibilidade de sequer ter remorsos ou escrúpulos de consciência (porque já não se acredita que há algo como o “certo” e o “errado”, mas apenas a disputa pelo poder), então eu não fui capaz de entender a afirmação do meu interlocutor desde o princípio. Aliás, completei, não é difícil enxergar, na prática, exatamente aonde a aplicação prática dessa “filosofia desmascaradora” nos fez chegar no atual momento político do país, e como tantos, mesmo dentro da Igreja, se deixaram arrastar por esta “denúncia” aparentemente em “prol dos oprimidos” – e muitas vezes com a mais pura das intenções. Nada pior do que a sensação de estar “religiosamente justificado” pela sensação de estar “lutando pelos pobres” quando na verdade se caiu apenas nas armadilhas de um pensamento de graves consequências políticas e nada democrático.
“E como você definiria a justiça?” perguntou-me ele. E pareceu-me sincero em sua dúvida. E eu tentei fazer a explicação mais simples e sincera que consegui. Zenit

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