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“AQUILO SIM É QUE ERA MULHER”

Temer tem a seu lado uma mulher anulada (tão decorativa quanto o vice).
A esposa do vice-presidente da república, Michel Temer, foi ufanada na reportagem da revista Veja.
A esposa do vice-presidente da república, Michel Temer, foi ufanada na reportagem da revista Veja.
Por Tânia da Silva Mayer*
Não é de hoje que os versos do antigo samba retumbam nas palavras e louvações à “mulher de verdade”. Todos, certamente, já ouvimos a canção que enaltece a “Amélia”, a personagem-símbolo de um ideal feminino. Sim, estamos falando da “Amélia” que há anos reforçou a tese ilusória de um “ideal de mulher”, querido por homens e mulheres como a realização perfeita de uma vida bem sucedida. “Amélia” é incensada porque, segundo o poeta, ela “era a mulher de verdade”. Os versos do samba confirmam essa ideia porquanto nossa personagem é alguém que, mesmo na fome, “achava bonito não ter o que comer”. Ela é, também, alguém que “não tinha a menor vaidade”; Mas há de se louvar Amélia não somente por essas segundas qualidades, porém, e principalmente, porque toda a sua vida gira ao redor de um homem, o seu homem: “às vezes passava fome ao meu lado”. A nossa “Amélia”, “a mulher de verdade”, é uma mulher sem ambições e sonhos. Quiçá ela teria esperança para alimentar as utopias. Glorificada pelos “homens de bem”, “Amélia” é, de longe, o símbolo do que espera-se de uma mulher adulta: que ela seja capaz de subtrair-se ao lado do seu companheiro e apoiá-lo nas suas convicções e ideias e, além disso, seja solidária aos seus conflitos, zelando pelo lar, pelos filhos e sendo compreensiva nos tempos de penúria que, vez ou outra, podem assolar os homens que foram mal sucedidos em seus negócios. “Amélia” é protótipo feminino à medida que anulou-se para viver, com discrição, os sonhos do homem que a possui e do qual ela estará sempre ao lado.
Não nos enganemos pensando que “Amélia” é, apenas, mais uma personagem na literatura que expressou e embalou as relações de uma época em que ser uma mulher que cuida da casa, que preza pela reserva da sua intimidade e que procura corresponder aos padrões de beleza estabelecidos pela alta sociedade consiste no grau máximo a ser atingido por elas. Das “cavernas” do século XXI, o antigo samba ainda é batucado, mas dessa vez ele não foi entoado para “Amélia”, não foi por ela que os pandeiros balançaram, mas por Marcela Temer, aquela que é “bela, recatada e do lar”.
A esposa do vice-presidente da república, Michel Temer, foi ufanada na reportagem da revista Veja, São Paulo, de semanas passadas, quando trouxe uma matéria sobre a Marcela, ressaltando sua “beleza”, “posturas” e “hábitos” familiares. Desde que Michel Temer ascendeu na vida política nacional, como vice-presidente da república, pouquíssimas vezes se viu ou se ouviu falar da sua esposa e a matéria da revista relata, agora (e por que será que tão somente agora, hein?), o seu lugar na vida de Temer. Não fossem as frases inicial e final, a matéria teria concorrido a um lugar comum de relato da vida dos famosos. No entanto, o louvor elevado às personagens da vida real se tornou ainda mais evidente quando o que se argumentou é que ambos são mulher e homem de sorte, respectivamente.

A sorte de Marcela consiste no fato do esposo bancá-la em jantares caros em lugares estimados pela classe média brasileira. Por outro lado, o vice é um homem de sorte porque Marcela é jovem e bela; porque é discreta e foge dos holofotes da velha imprensa; porque devota cuidados ao lar, lugar onde está na maioria do seu tempo. Por tudo isso, Temer é um homem de sorte. Tem a seu lado uma mulher anulada (tão decorativa quanto o vice), uma aliada conectada que passa os dias analisando o clima das Redes Sociais, tão somente a fim de deixar o marido bem informado do que lá se passa. Ela é uma espécie de “Amélia”, sem sonhos, desejos, vontades e ambições. O retrato de Marcela, que foi pintado pela revista, revela isto, ela é uma mulher a esperar pelo marido e a acompanhá-lo, de casa, com a sua pronta solidariedade a seu homem de vida pública. A matéria da revista, ao dizer que o vice-presidente é um homem de sorte, pareceu cantar o samba naquele verso que dizia (não sei mais se de Amélia ou de Marcela): “Aquilo sim é que era mulher”.
Obviamente que essa pintura promovida pela revista tem o objetivo, dentre outras intenções, contrapor, no meio do caos antipolítico que foi instaurado no país, a figura de Marcela com a de Dilma. Nem de longe Marcela, tal como foi ilustrada, se parece com a presidenta, a começar pelo fato de que Dilma não vive às sombras de um marido como Marcela. Depois, porque a presidenta ocupa o maior cargo da República e Marcela é tão somente vice-primeira-dama; enquanto Dilma chefia, lidera, delibera, discursa no Brasil e no exterior, tudo isso com muita valentia e coragem, suportando toda uma sorte de xingamentos, e outras violências, machistas por parte de quem a ela se opõe, Marcela continua cuidando da sua beleza e do seu lar, com descrição. Essa é a postura louvada que, quando é feita por um veículo de imprensa com abrangência nacional, não pretende outra coisa que reforçar a ideia de um ideal de mulher que deve ser imitado por todas as outras. Com alegria, as Redes Sociais, embaladas por muita crítica, não se calaram e retumbaram ainda mais forte que “o lugar de mulher é onde ela quiser”. Passou da hora de todos entenderem isso: que nós somos “senhoras do destino”, ou melhor, que somos donas das nossas decisões e, sobretudo, das nossas vidas e que o“lugar de mulher” é onde quisermos estar: em casa, cuidando dos filhos e do lar, no esporte, na sala de aula, na política ou na liderança das instituições e nos altos cargos de chefia, ou em nenhum desses lugares também, caso queiramos.
A idealização a respeito de um “lugar de mulher” foi corroborada, ao longo da história pelas religiões de cunho machista-patriarcal. No catolicismo dos séculos XI ao XIX, Maria de Nazaré foi apresentada como modelo e paradigma de vida feminina. Ela se tornará a meta inalcançável para todas as mulheres que, entre Eva e a Mãe de Jesus, nunca conseguirão alcançar um lugar de “Nossa Senhora”. Uma crítica feminista a respeito da figura de Maria é realizada na esteira dos textos bíblicos a fim de purificar o que acostumou-se compreender a respeito da mãe de Jesus e com amplas e complexas consequências para vida de todas as outras mulheres, as de ontem e as de hoje. Mas isso é assunto para nosso próximo artigo. Até a próxima.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

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