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O TRABALHO COMO FONTE DE DIGNIDADE NA BÍBLIA

Fomos criados para a comunhão e não para o acúmulo desmedido de riquezas.
O homem e a mulher fazem as vezes de Deus no zelo pelo mundo criado.
O homem e a mulher fazem as vezes de Deus no zelo pelo mundo criado.
Por Felipe Magalhães Francisco*
“No sétimo dia, Deus concluiu toda a obra que tinha feito; e no sétimo dia repousou de toda a obra que fizera” (Gn 2,2). O repouso do Criador, sobre toda a criação, é a conclusão do trabalho divino, de dar vida ao mundo criado. Por ocasião da Aliança, feita com o povo de Israel, guardar o sábado – portanto, o sétimo dia –, torna-se imperativo de repouso para todos aqueles que trabalham, pois o próprio Deus repousa nesse dia (cf. Ex 20,9-11). O repouso de Deus sobre a criação significa comunhão: é o Criador que abraça todo o mundo criado, numa relação de harmoniosa convivência. Esse repouso, entretanto, não é apenas para o humano criado, mas para toda a criação: também os animais e a terra precisam descansar.
Com o passar do tempo, ao passo em que a relação entre o povo e Deus ia se estreitando, novo significado foi agregado à lei do repouso sabático. À ideia do repouso como dia de convivência com o Criador, foi agregada a memória da libertação da escravidão no Egito: “Lembra-te de que foste escravo no Egito, mas o Senhor teu Deus te tirou de lá com mão forte e braço estendido. É por isso que o Senhor teu Deus ordena que guardes o sábado” (Dt 5,15). É preciso que o povo nunca se esqueça da ação de Deus, como libertação da escravidão no Egito, bem como da relação de comunhão que esse Deus tem com a criação. Portanto, todos são chamados a guardar o dia do repouso: o dono da terra, os seus filhos, os seus servos, os seus animais e os estrangeiros que vivem na terra, pois a vida de liberdade e para a liberdade não significa em nada a experiência de escravidão no Egito.
Os dois significados do repouso aludem, ainda, à outra questão, a saber, a dignidade do trabalho. O próprio Deus Criador revela a dignidade do trabalho, ao contemplar a obra de sua criação, bem como ao fazer comunhão com ela. Nesse sentido, o trabalho não significa um mero fazer, sem mais. O ser humano, como responsável por toda a criação, precisa dar valor ao seu trabalho e ao trabalho de toda a criação, tanto como gratidão pela vida que se vai edificando quanto pela Terra que o sustenta e produz vida, pois a terra que recebeu por herança do Senhor não foi dada por mérito, mas pela gratuidade de Deus: “Fica, pois, sabendo que não é por tua justiça que o Senhor teu Deus te dá a posse desta boa terra. Pois na verdade és um povo de cabeça dura” (Dt 9,6).
Contudo, insistiu-se, por muito tempo, no trabalho como castigo pelo pecado humano, numa interpretação de Gn 3,17-19. O sentido do trabalho, no entanto, precede à ideia deste como um fardo: toda a criação está sob o cuidado do humano criado, pois, feito à imagem e à semelhança do Criador, o homem e a mulher fazem as vezes de Deus no zelo pelo mundo criado. O desejo de domínio e apropriação sobre a criação, por parte do ser humano, torna a relação com o mundo criado mais difícil e pesada, pois há uma quebra na comunhão primordial. O pecado humano, nesse sentido, gera como que uma cadeia de injustiças, criando ruptura na comunhão entre toda a criação: “[...] amaldiçoado será o solo por tua causa. Com sofrimento tirarás dele o alimento todos os dias da tua vida” (Gn 3,17).
Nós, hoje, precisamos recuperar a inspiração bíblica primordial para o trabalho e romper com essa cadeia de injustiça. Precisamos pensar o trabalho não como um meio de acumular riquezas, sem mais, tampouco para garantir o mínimo de sobrevivência, sem quaisquer outras realizações: “Por isso, eu vos digo: não vivais preocupados com o que comer ou beber, quanto à vossa vida; nem com o que vestir, quanto ao vosso corpo. Afinal, a vida não é mais que o alimento, o corpo, mais que a roupa?” (Mt 6,25). O trabalho, como caminho de dignidade para o ser humano, precisa ser valorizado e respeitado, não como mão-de-obra, que a todo momento pode ser substituída por outra força humana de trabalho ou por uma máquina, mas como construtor de um sujeito que se realiza, pessoal e comunitariamente, também pelo trabalho. Dessa maneira, o trabalho não pode se tornar um meio de perpetuar a injustiça contra a vida, tanto como exploração do humano trabalhador como da natureza, fonte de recursos.
Romper com a cadeia da injustiça e da exploração é resgatar a inspiração mais profunda da relação de Deus com o mundo criado: fomos criados para a comunhão e não para o acúmulo desmedido de riquezas, que só causa injustiça e destruição para os outros e para a natureza, pois “mais vale pouco com o temor do Senhor do que grandes tesouros com inquietação” (Pr 15,16). E mais: “[...] que adianta alguém ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?” (Mc 8,36). O coração humano precisa se voltar para aquilo que é fonte de vida, na busca pelo que realmente é necessário. Nesse sentido, nosso trabalho precisa ter como fruto o próprio Reino de Deus: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33). Se assim não for, a dignidade da vida está cativa. Precisamos, pois, libertá-la! 
*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015).

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