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ÓPERA DO TEMPO

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O sumiço intrigava o garoto. Por que seu pai e seu tio se escondiam?
Óperas, talvez pelo excesso familiar, jamais entraram em seu cardápio musical.
Óperas, talvez pelo excesso familiar, jamais entraram em seu cardápio musical.

Por Luís Giffoni*

Os dois irmãos eram vizinhos. Gostavam de ópera. De vez em quando, o mais novo ia à casa do outro ouvi-las. Trancavam-se numa sala, punham os velhos discos de 78 rotações nas alturas, Enrico Caruso de preferência, cantavam juntos os libretos que sabiam de cor, atropelavam-se nas árias, sumiam do mundo.

O sumiço intrigava o garoto. Por que seu pai e seu tio se escondiam e não permitiam que nem as esposas entrassem na sala? Numa tarde, resolveu investigar. Quando o berreiro começou, observou o dueto pelo vidro de uma das janelas. Os irmãos cantavam e choravam. Ou se abraçavam e choravam. O tio segurava um lenço enorme para conter o tsunami do rosto.

O garoto, então com dez anos, achou a performance idiota. Seu pai, quase sessentão, severo em casa, desmanchava-se ao lado do irmão por conta de uma música ridícula. Sim, tinham de trancar-se para ninguém descobrir quão idiotas eram.

A bisbilhotagem foi descoberta, e o enxerido, convidado a participar da sessão de lágrimas, enquanto o pai e o tio lhe confessavam que choravam porque, além da beleza, as óperas se confundiam com a juventude deles. Adolescentes, juntavam os centavos para comprar os ingressos mais baratos, mas sempre estavam na plateia. O garoto pensou: e daí? Sofreu um tempão sem fim, obrigado a escutar a Tosca, de Giacomo Puccini, no original e traduzida. Aquilo não era música, mas tortura. Vez ou outra, um trechinho o atraía, nada mais. Uma ária, no entanto, o encantou. Porém logo a perdeu na memória.       

O garoto cresceu ao som da Bossa Nova e dos Beatles. Óperas, talvez pelo excesso familiar, jamais entraram em seu cardápio musical. Nunca entendeu como os dramalhões do século 19 ainda faziam sucesso.

Poucos meses atrás, o garoto, agora avô, tomou um voo internacional para visitar duas netas. Na seleção musical do avião havia o ícone óperas. Tocou-o. Um nome apareceu: E lucevan le stelle. Ele lhe dizia algo. Resolveu conferi-lo.

Ao escutar os primeiros acordes, na voz cristalina de Luciano Pavarotti, voltei nas décadas. Era a ária que me encantara na infância. Bela, pura música, fonte de emoção arrebatadora. Não consegui me controlar, chorei. Sem mais nem menos, chorei igual meu pai e meu tio. O que era aquilo? O que me acontecia? Senti-me ridículo. Antes que o passageiro ao lado me flagrasse, por coincidência um menino de mais ou menos dez anos, virei-me para a janela. Vi o céu límpido. Na noite escura, as estrelas reluziam. As mesmas velhas estrelas que sempre nos têm encantado.


* Luís Giffoni tem 25 livros publicados, entre romances, contos, crônicas, ensaio e histórias para jovens. Recebeu diversas premiações como do Prêmio Jabuti de Romance, da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, Prêmio Minas de Cultura, Prêmio Nacional de Romance Cidade de Belo Horizonte. Sua peça In Memoriam foi encenada pelo Oficinão do Grupo Galpão. Mora em BH.

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