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A vida atribulada do Acordo Ortográfico

No Brasil o AO90 nunca chegou a ser assunto e a sua existência ou não tanto faz.


Já ocorreram três abaixo-assinados ao parlamento de Lisboa a pedir a extinção do Aborto Ortográfico
Já ocorreram três abaixo-assinados ao parlamento de Lisboa a pedir a extinção do Aborto Ortográfico
Por José Couto Nogueira*
Em 16 de novembro de 1990 foi estabelecido um acordo entre todos os países de língua oficial portuguesa (PALOP) para uniformização da escrita. Assinado o documento, as normas constitucionais dos participantes – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe – exigiam a ratificação pelos respectivos parlamentos. Ainda o acordo não fora assinado já se levantavam vozes contra o princípio; depois da assinatura, outros interessados vociferaram contra a prática.
O acordo tinha sido cozinhado pelas academias de Letras portuguesa e brasileira, nomeadamente Lindley Cintra e Manuel Jacinto Nunes pelos lusos e António Houaiss e Nélida Piñon pelo Brasil. Logo correu que os principais impulsionadores e interessados no AO90 eram as editoras, tendo em vista um mercado unificado para a produção livreira.
Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe resolveram o assunto de imediato, recusando pura e simplesmente o acordo. O primeiro a ratificar foi Portugal, logo em 1991, ficando a entrada em vigor marcada para 2005, mas acabou por ocorrer só em 2014. No Brasil foi ratificado em 1995, para entrar em vigor dez anos depois, mas o Governo Dilma acabou por adiar sine die. Timor Leste, que entretanto se tornou independente, mas onde mal se fala o idioma e nada se publica, aceitou em 2004. Até Janeiro de 2016, apenas entrou em vigor efectivamente em Portugal.
Chegou-se assim a uma situação bastante caricata: um acordo que pretendia unificar a grafia em todos os PALOP só é usado em Portugal, separando ainda mais o idioma do país original de todos os outros países onde se fala português. A esta situação ridícula junta-se ainda a enorme oposição dos intelectuais portugueses – os que de fato usam a língua – contra o AO90. Entrou nos livros didáticos em 2015, gerando enormes lucros para as editoras, e foi adoptado pelos órgãos de comunicação, mas a maioria dos livros não didáticos continua a ser escrita no português pré AO90, por indicação expressa dos seus autores. O mesmo acontece com muitos colunistas e comentadores na imprensa.
Já ocorreram três abaixo-assinados ao parlamento de Lisboa a pedir a extinção do Aborto Ortográfico (como lhe chamam os desafectos), mas os deputados, não vendo nisso nenhuma vantagem política ou económica, não se têm interessado.
Mas agora há novidades, quer dizer, uma esperança para os incontáveis cidadãos que vituperam o AO90 diariamente nas redes sociais e na imprensa. O novo Presidente da República deu indicação de que se irá interessar pelo assunto!
Marcelo Rebelo de Sousa é um fazedor de consensos – um populista, diz quem não gosta dele. Nas vésperas da sua chegada oficial ao Palácio de Belém, publicou no jornal “Expresso” um texto em que analisa os desafios colocados a todos os Presidentes desde a fundação da República e enumera as lições que devem ficar para o futuro. Na nota de rodapé com que termina um artigo que não deixa de ser uma declaração de intenções, lá vem a expressão consagrada: “O Autor escreve de acordo com a antiga ortografia”.
Não pode ser um lapso nem foi decidido por acaso; é um discreto interesse pela questão, apesar de, durante a campanha eleitoral, se ter recusado a comentar o assunto. Aliás, foi o único; todos os outros candidatos disseram expressamente que queriam a extinção do AO90.
Num obscuro debate em 2008, na Biblioteca Municipal de Valongo, Marcelo disse que as alterações introduzidas pelo AO90 “não são substanciais” para a língua portuguesa e que, nessa medida, existia, então, “um debate artificial sobre a questão”.
Em 1991 foi uma das personalidades que subscreveu um dos vários manifestos contra o AO90, embora posteriormente se tenha declarado a favor do documento. Mais tarde, em 2014, reconheceu que “apesar de defender” o Acordo, ainda não se tinha adaptado às novas regras. “Escrevi assim toda a vida. Não vou mudar”, terá afirmado, segundo o relato do jurista Artur Magalhães Mateus, num artigo de opinião no jornal “Público”.
Desde que é Presidente, continua a escrever “à antiga”. Espera-se assim, que relance o debate e leve o Parlamento, único órgão com poderes constitucionais para tal, a anular o acordo.
Segundo Pedro Mexia, consultor cultural de Marcelo, têm chegado a Belém "pedidos de cidadãos e instituições manifestando-se contra o acordo" e "o PR entende que este só poderá ter continuidade se, de facto, for ratificado por todos os países envolvidos. Caso contrário, a questão tem de ser repensada".
Quanto às editoras, que todos dizem sabem ser o grande lóbi a favor do AO90, parece que entretanto mudaram de ideias. Pedro Sobral, diretor da Leya, a maior editora generalista, desvaloriza a questão. "A alteração do acordo teria impacto se, na altura da sua aplicação, a Leya tivesse dito aos autores para o seguirem. Não é o caso", garante. Nas pequenas editoras, ninguém impôs o acordo, deixando ao critério dos autores, a maioria contra. A Porto Editora, que é a maior nos livros didáticos, teria mais a ganhar com um retorno à grafia antiga – como ganhou com a nova - não quis comentar. Dizem as más línguas que a sua influência é tal que dela dependerá uma decisão dos órgãos políticos.
No Brasil, que saibamos, o AO90 nunca chegou a ser assunto e a sua existência ou não existência tanto faz. Em Portugal tornou-se uma causa, tem feito correr cascatas de tinta e petabites de opinião. Vamos a ver se é agora que se vai por resolver a questão de uma vez por todas.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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