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BOM DIA, VIZINHO

Mesmo diante do cenário adverso, pretendo continuar dando bom dia a estranhos.
As pessoas vão se fechando cada vez mais nos seus apartamentos, celulares e automóveis de vidros escuros.
As pessoas vão se fechando cada vez mais nos seus apartamentos, celulares e automóveis de vidros escuros.
Por Fernando Fabbrini*
De uns tempos para cá passei a adotar uma tática revolucionária de comportamento urbano: cumprimentar pessoas desconhecidas com um simplesbom dia ao cruzar com elas nos quarteirões vizinhos. Trata-se de um hábito importado que assimilei nas minhas viagens mundo afora e que venho experimentando, com algum sucesso, por aqui.
É certo que nessa missão conto com o apoio de um cachorro maluco que levo para passear religiosamente às oito da matina. Bruno, o vira lata incontrolável detentor de alegria em estado bruto se ergue nas patas traseiras e abana o rabo, feliz, fazendo festa para todos os transeuntes durante nossa jornada diária. Mas nem sempre é correspondido. Existem aqueles carrancudos, apressados em direção ao trabalho ou fingindo isto e que também fingem ignorar a saudação canina que antecede a minha. Sempre afobados, usam como desculpa uma ligação telefônica no celular, a atenção ao sinal de trânsito ou simplesmente dirigem seus olhares ao céu azul, em busca de eventuais discos voadores.
Outra classe de comportamento variável é a daqueles que, como eu, saem de manhã com seus cachorros. Donos de bichos são tradicionalmente solidários e simpáticos; retribuem sorrisos e sempre têm um tempinho para um papo rápido, versando sobre as travessuras do seu animal ou sobre o preço das rações - um absurdo! Como já adverti nesta coluna, Bruno foi adotado (pais desconhecidos e infância de risco) e ainda passa por um programa de ressocialização e boas maneiras ao meu encargo. Assim, não posso garantir 100% de seu comportamento ao cruzar com outros cães: às vezes ele late e rosna para os semelhantes e isto costuma assustar os mais sensíveis, compreendo. Nas redondezas todos nos tratam bem, mas há uma exceção que me intriga. Trata-se de uma senhora que passeia com uma linda cadela de alguma raça chique, no mesmo horário. Ambas têm, respectivamente, o nariz e o focinho empinado e contemplam com evidente desprezo, do alto de seus nobres pedigrees, a passagem de um homem comum de moletom velho levando pela coleira um vira-lata indisciplinado. Sequer abanam o rabo, ignorando-nos totalmente.
Cães e gatos à parte, nota-se como as pessoas vão se fechando cada vez mais nos seus apartamentos, celulares e automóveis de vidros escuros. Nos prédios, são raros os condôminos que se conhecem pelo nome e detêm alguns dados sobre o currículo familiar da porta ao lado – quem são, de onde vieram, o que fazem. Os antigos laços de amizade entre vizinhos se esfarraparam nesses tempos de egoísmos e neuras. Isso explica, em parte, o clima de estranheza e até de hostilidade mal disfarçada que costuma permear as reuniões de condomínio.
A distância regulamentar entre humanos - mantida pela falta de hábito, pelo medo ou pela má educação - alcança com frequência os balcões de lojas, caixas de supermercados e atendentes de maneira ampla. Semana passada, só de curtição, fiz uma pesquisa de comportamento: entrei em exatos vinte e dois estabelecimentos – supermercados, loterias, correios, papelarias, lojas diversas. Recebi um acolhimento sorridente (tipo “bom dia, senhor; em que posso lhe ajudar?”) em apenas oito desses. Numa farmácia, desprezando o sagrado direito da ordem de chegada, tentaram até passar na minha frente. (Dessa vez não reclamei como de costume. Afinal, estava realizando uma pesquisa de campo). Nos demais, fui ignorado - assim como os outros clientes que entravam, sendo obrigado a disputar a atenção da mocinha emburrada para ser atendido. Parece que hoje em dia o treinamento das balconistas resume-se à ordem: “fique à frente do cliente em silêncio e espere pra ver o que ele quer. Não olhe-o nos olhos. Converse futilidades com sua colega durante o atendimento. Mantenha a cara fechada, ar de tédio ou cante uma canção baixinho. Depois da venda, livre-se do referido o mais rápido possível, sem mais delongas”.
Mesmo diante do cenário adverso, pretendo continuar dando bom dia a estranhos – humanos e cachorros - por minha conta e risco. Serei ainda mais proativo, como dizem os especialistas, saudando os desconhecidos e puxando assunto, sem invasões de privacidade. E aproveito para lançar a ideia da corrente do “bom dia”. Custa muito pouco e não dói nada. Tente também aí do seu lado. O que dói pra valer é a solidão da cidade grande – isto sim, uma corrente real, grossa e pesada que amarra os prisioneiros naquele calabouço dentro de si mesmos.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.

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