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DIREITOS HUMANOS E CRISTIANISMO: 'ATÉ QUANDO, SENHOR?'

Uma ameaça crescente e perigosa para os direitos humanos é o individualismo e a indiferença.

Uma ameaça crescente e perigosa para os direitos humanos é o individualismo e a indiferença.
Por Tânia da Silva Mayer*
O diálogo sobre os direitos humanos não é fruto de uma preocupação nova. O ser humano sempre se interessou pelo sentido da vida procurando obter respostas para ver resoluto o enigma da existência. A tensão entre as mais genuínas expressões de amor e cuidado com a vida e os cruéis abusos e atentados à dignidade da pessoa humana faz convergir o olhar, sempre e de novo, para a temática dos direitos humanos. Ao longo da história das civilizações e das sociedades, as populações foram sensibilizando-se a respeito da dignidade da pessoa humana. Tal processo culminou na elaboração de um conjunto de leis e normas que, regulamentando a convivência humana, cercava a vida humana e a protegia em sua dignidade.
Para os cristãos a encarnação da Palavra é o cume da revelação de Deus e do ser humano. O ser humano é predestinado à filiação divina, na filiação de Jesus, o Filho, pelo Espírito Santo. Curiosamente, a civilização cristã ocidental elaborará um elenco de direitos inalienáveis do ser humano, mas só após ver emergir as duas grandes Guerras Mundiais, em que massas populacionais, como o caso dos judeus na Alemanha, foram dizimadas, dentre outros motivos, por causa da eugenia nazista. Paradoxalmente, nossa época será a que mais mostrará uma preocupação e empenho em assegurar a dignidade da pessoa humana e, no entanto, ela será palco das mais absurdas atrocidades que se podem cometer contra o ser humano.
A preocupação pela dignidade humana esteve, por diversas vezes, presente no horizonte do cristianismo. Santo Irineu, a esse respeito já ensinava que: “a glória de Deus é o homem vivo; a vida do homem é a visão de Deus [...] a glória do homem é Deus. Pois o recebedor da obra de Deus, de toda a sua sabedoria e de todo o seu poder é o homem”[1]. O Concílio Vaticano II[2], na mesma linha, afirmará que a dignidade da pessoa humana nasce da sua vocação para a vida de Deus. Seguindo essa prerrogativa, o Concílio, e o Magistério posterior, acentuará a Revelação de Jesus, como ponto culminante da revelação da pessoa humana e de sua dignidade. É Jesus Cristo que revela o sentido último da vida humana, que é a participação comunional na vida do Deus Trindade. Destarte,

A revelação em Cristo do mistério de Deus como Amor trinitário é também a revelação da vocação da pessoa humana ao amor. Tal revelação ilumina a dignidade e a liberdade pessoal do homem e da mulher, bem como a intrínseca sociabilidade humana em toda profundidade[3].

A revelação de Deus em Jesus abre o horizonte do ser humano, reconhecido como imagem e semelhança de Deus e destinatário do seu amor. João Paulo II insistirá, diversas vezes, que é preciso amar o ser humano por sua humanidade, pela dignidade particular que cada pessoa possui. Nesse sentido, o reconhecimento e o respeito pela dignidade da pessoa humana é que faz com que se queira proteger tal dignidade de quaisquer ameaças e perigos. De fato, a compreensão cristã acerca da dignidade da pessoa humana influenciou todo o ocidente cristão a respeito dos direitos inalienáveis das pessoas. Nesse sentido, a defesa e promoção dos direitos humanos, por parte dos cristãos e cristãs, estão distantes de um simples humanismo cristão advindo de um sistema ideológico político-social, mas fundamenta-se na Boa Nova anunciada por Jesus. É o Evangelho, radicado na exigência de Amor ao próximo, que movimenta os homens e as mulheres que confessam sua fé em Jesus a empenharem-se nas questões e nas lutas referentes aos direitos e à dignidade da pessoa humana.
Uma ameaça crescente e bastante perigosa para os direitos humanos é o individualismo e a indiferença. O papa Francisco tem sinalizado, desde a sua “A Alegria do Evangelho”, que essas duas posturas são prejudiciais para a experiência comunitária da fé. Compreendemos que ambas as posturas corroboram para o enfraquecimento da promoção dos direitos humanos, na medida em que elas anulam os outros seres sociais, sobretudo os que estão com suas vidas ameaçadas e, portanto, com a dignidade furtada. É por causa do individualismo e da indiferença que o assassinato da Luana dos Reis, jovem de 34, mulher, negra, lésbica e pobre, não nos incomoda mais e nem nos interpela, profeticamente, à luta em defesa das minorias excluídas à sorte das injustiças dos perversos e violentos? Que ninguém mais seja sepultado antes do tempo, como foi com a Luana. Que a sua morte tenha sido a última. Não podemos nos acovardar mais frente à violação da dignidade humana. Oxalá nossas preces e orações não necessitem mais clamar: “Até quando, Senhor?”.

[1] Santo Irineu citado em: DOIG K., German. Direitos humanos e ensinamento social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1994.
[2] GS 19
[3] PONTIFÍCIO Conselho “Justiça e Paz”. Compêndio da doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2011. Pág. 33.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

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