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O EVANGELHO DA CRIAÇÃO

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O termo criação não exprime uma simples constatação empírica e objetiva da existência.
A terra é de Deus, portanto. Eis a motivação primordial da responsabilidade do ser humano para com a natureza.
A terra é de Deus, portanto. Eis a motivação primordial da responsabilidade do ser humano para com a natureza.

Por Frei Sinivaldo Silva Tavares*

Sugestivo o título dado pelo papa Francisco ao segundo capítulo da Laudato Si’.  Sugestivo e, sobretudo, coerente com as reflexões feitas por ele no decorrer da encíclica. Dizer “evangelho” da criação significa, em primeiro lugar, salientar a peculiaridade da experiência cristã expressa no termo “criação”. De fato, falar em criação é compreender cada criatura e o conjunto das criaturas no bojo de uma relação primordial com seu Criador, concebido como origem e plenitude de toda vida. A rigor, só se pode falar com sentido em criação, pressupondo uma relação prévia entre criador e criatura(s). Poderíamos não existir e, no entanto, existimos. Poderíamos, ademais, existir de outras formas e em circunstâncias diversas. Todavia, existimos assim como somos e existimos aqui e agora. Não há, portanto, explicações cabais que justificam a existência enquanto tal. Por esta razão, o termo criação não exprime uma simples constatação empírica e objetiva da existência. Nem, por outro lado, constitui uma explicação que dê conta das razões necessárias do fato de existirmos. Para todos os efeitos, o termo criação remete ao sentido que pessoas e comunidades cristãs deram à própria existência e à vida em geral: dom gratuito, fruto da imensa generosidade de um Criador que, ademais, se nos revela como Pai de bondade. Como afirma o papa: “Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo” (n. 77).

Daí a razão de o papa conceber a experiência cristã da criação como um autêntico “evangelho”. E em se tratando de “evangelho”, isso implica no fato de que a experiência de termos sido criados será narrada e proposta, nunca imposta. Por isso a decisão de se inserir esse capítulo no corpo da encíclica que constitui um apelo dirigido à inteira civilização planetária. Não se trata, portanto, de uma explicação ou de uma teoria que o papa quer oferecer como sendo a única ou a melhor visão do universo. Trata-se, na verdade, da contribuição específica, peculiar, que as comunidades cristãs oferecem ao riquíssimo diálogo em curso no seio da sociedade plural. A melhor maneira de se inserir nesse amplo debate é partilhar a própria experiência e visão com o intuito de simplesmente contribuir a esse diálogo plural na busca de alternativas que nos permitam desvencilhar desse emaranhado existencial, social e cósmico no qual estamos enredados.

Embora o papa diga explicitamente não querer elaborar uma teologia da criação propriamente dita, ele rememora dimensões imprescindíveis da visão cristã da criação. Num primeiro momento, ele recorda “a sabedoria das narrações bíblicas” (nn. 65-75).

Reconhece que, graças a uma interpretação incorreta das Escrituras sagradas, a tradição judaico-cristã tornou-se objeto de “uma acusação” de que Gn 1,28 “favoreceria a exploração selvagem da natureza, apresentando uma imagem do ser humano como denominador e devastador” (n. 67).  Propõe uma “justa hermenêutica” do texto bíblico no sentido de interpretar o texto no seu contexto próprio e, no caso específico, interpretar a primeira narrativa da criação (cf. Gn 1,1 – 2,4a) em sua intrínseca e recíproca relação com a segunda (cf. Gn 2,4b-25). Pois segundo escreve o papa: “É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a “cultivar e guardar” o jardim do mundo (cf. Gn 2,15). Enquanto “cultivar” quer dizer lavrar ou trabalhar um terreno, “guardar” significa proteger, cuidar, preservar, velar. Isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza” (n. 67).

A terra é de Deus, portanto. Eis a motivação primordial da responsabilidade do ser humano para com a natureza. Essa é a incumbência específica do ser humano, tornando-se, ao fim e ao cabo, o sentido de sua singularidade no conjunto das criaturas. Pressuposta essa responsabilidade do ser humano para com a complexidade da criação, o papa Francisco rechaça de forma contundente o antropocentrismo moderno, caracterizando-o como “despótico” por fazer um “uso desordenado das coisas” (nn. 68-69). São veementes as palavras do papa, a este propósito: “Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada” (n. 67). E ainda: “Esta responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo” (n. 68).

O papa prossegue sua revisitação dos textos bíblicos oferecendo-nos uma releitura das narrativas simbólicas das origens (cf. Gn 1-11). Lembra-nos que o pecado se configura a partir da ruptura daquela relação primordial e constitutiva dos seres humanos: para com o Criador, para com seus semelhantes e para com o conjunto da criação. Mas, recorda-nos que a história da salvação não termina com o pecado. Somos filhos da promessa e a imagem do arco-íris se torna o perene símbolo do desígnio do Criador de jamais destruir a obra de Suas mãos. Dos textos jurídicos, o papa salienta o preceito do Shabbath como um expediente excogitado para garantir o direito à vida aos pobres, à vida da terra e do conjunto de suas criaturas. Nos escritos proféticos, o papa individua a conjugação do senhorio de Deus com seu carinho e cuidado para com todas as criaturas. E, por fim, nos escritos sapienciais ele salienta o convite à admiração, ao reconhecimento e ao louvor agradecidos.

Conceber a complexidade de tudo quanto existe como criação implica, ademais, em reconhecer a índole intrisecamente mistérica da inteira realidade criada. Nesse sentido as criaturas existem não como mera extensão da divindade criadora. Nem constituem, por outro verso, seres decaídos de uma condição anterior mais nobre. Nós e as criaturas todas existimos como fruto de uma decisão livre e amorosa de um Deus que é criador e Pai, como reza o primeiro artigo do nosso Símbolo de fé. Fomos criados, mediante a livre decisão divina e, portanto, criados livres. Afirma-se, nesse caso, a legítima autonomia e dignidade não apenas dos seres humanos, mas também das realidades históricas e cósmicas. A autonomia e a contingência de nossa existência se constituem assim na condição de possibilidade de nos relacionarmos com o Criador de forma livre. Liberdade e autonomia são condições imprescindíveis para toda e qualquer relação de amor. Só quem é livre e autônomo pode decidir-se, de fato, pelo amor, amando e deixando-se amar.

Portanto, somente enquanto pressuposta a autonomia das realidades criadas, é que podemos falar do mistério que habita a interioridade da matéria, das criaturas todas e de cada uma delas, em particular. O papa insiste muito nessa dimensão mistérica da criação, pois convencido está de que a consciência dessa dimensão talvez produza no ser humano contemporâneo uma mudança de atitude e de mentalidade. A consciência da dimensão mistérica da natureza poderá levar o ser humano a abandonar sua atitude instrumental e consumista para com as criaturas.

Vivemos, hoje, sob a hegemonia do paradigma da Tecnociência e do Mercado. Ambos, Mercado e Tecnociência, constituem autênticos horizontes no interior dos quais se desvelam praticamente todos os âmbitos da experiência humana. A Tecnociência tornou-se horizonte de compreensão do ser humano em relação ao mundo e a si próprio. Não apenas nossos estilos de vida, nosso modo de trabalhar e viver, são condicionados pela técnica, mas também nossa identidade mais profunda é dada pela diferença técnica. Somos ainda vítimas da “absolutização do Mercado”: uma autêntica mercantilização da vida. O mercado vai se impondo como único cenário de nossa trama civilizacional atual. Nossos fluxos vitais e também os valores e símbolos culturais se tornam mercadoria de consumo e de descarte. Portanto, podemos falar de processos em curso descritos como “mercantilização” e “tecnificação” da vida. Ambos os processos revelam aquela situação descrita pelo papa de que a Tecnociência submete a si a economia que, por sua vez, torna a política refém. Escreve ele: “Quando se propõe uma visão da natureza unicamente como objeto de lucro e interesse, isso comporta graves consequências também para a sociedade” (n. 82).

É a presença misteriosa do Criador na interioridade de suas criaturas por meio de Seu Espírito vivificador que recobra em nós a esperança mais genuína. Aquela singular esperança que brota dos escombros sombrios do sofrimento e da morte. Por isso tem sentido falar em “dores de parto”, em “tirar bem de um mal”, no sentido de forcejar a emergência das potencialidades internas e escondidas que propiciam o aparecer do novo. 

* Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia sistemática na FAJE e no ISTA, Belo Horizonte. Entre suas recentes obras, publicadas pela Editora Vozes, estão: Evangelização em diálogo: novos cenários a partir do paradigma ecológico; Evangelização e Interculturalidade; Teologia da Criação: outro olhar – novas relações; Trindade e Criação. Em 2016, organizou com A. Murad, o livro: Cuidar da casa comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si’, publicado por Edições Paulinas. Tem publicado ainda estudos em obras coletivas e artigos em revistas teológicas especializadas.

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