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O VAZIO DA CPLP

A Comunidade é exemplo de como uma boa ideia pode transformar-se em coisa nenhuma.
Nestes 20 anos, o que assistimos foi Portugal tentar, sem conseguir, ter alguma influência nos outros.
Nestes 20 anos, o que assistimos foi Portugal tentar, sem conseguir, ter alguma influência nos outros.
Por José Couto Nogueira*
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa foi fundada em 1996 com um objetivo estatutário bastante indefinido: “Aprofundamento da amizade mútua e da cooperação entre os seus membros”. Certamente que os participantes – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe – tinham expectativas diferentes, mas não incompatíveis, desta associação de ricos e pobres, grandes e pequenos, unidos apenas pela origem colonial portuguesa e o idioma oficial. (Timor Leste aderiu ao adquirir a independência da Indonésia, em 2002).
Esta diferença de expectativas poderia ser compensada procurando vantagens comuns, mas logo de início a falta de energia e objetivos da diplomacia portuguesa, tradicionalmente fraca, desconexa e pouco atreita a modernidades, esvaziou o projeto de um fio condutor indispensável. O que se pretendia? Ativar as trocas comerciais? Difundir o idioma? Criar um bloco de interesses econômicos e diplomáticos? Nos discursos, empolados com belas frases pescadas no arsenal diplomático, falava-se de tudo isto e muito mais; na prática, a primeira preocupação foi criar magníficos cabides de emprego para diplomatas em fim de carreira, desejosos de manter suas prerrogativas e salários internacionais.
Portugal tinha um dever a cumprir – manter o idioma e a cultura por esse idioma - e uma vantagem – servir de ponte comercial e diplomática entre a União Europeia e países doutros continentes, alguns deles mercados interessantes. Mas manter o idioma ficou a cargo de uma instituição sem verba e sem energia, o Instituto Camões, tutelado simultaneamente pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores) e da Educação. As duas tutelas nunca se entenderam e os países africanos da CPLP, interessados na língua como fator de união entre tribos com dialetos diferentes, fizeram mais – mas muito pouco – do que o Instituto para esse objetivo. A título de exemplo, caricato, o Instituto poderia utilizar os livros excedentes dos editores portugueses para fomentar a língua em países com falta de verbas e obras para imprimir literatura e mesmo livros técnicos; mas o sistema fiscal português torna oneroso para os editores fazer doações, saindo-lhes mais em conta destruir os livros. Quanto a cursos de português nesses países, o Camões não tem verba para manter um corpo de professores. Atualmente, o maior centro de ensino da língua portuguesa no mundo está... na China.
A questão não se coloca para o Brasil, evidentemente, que tem uma produção livreira até superior à portuguesa e um ensino que, pesem os seus problemas, é muito superior ao indigente sistema dos outros PALOP. Mas o Brasil é uma exceção na organização, por várias razões: é de muito longe o maior potentado internacional, e os seus interesses na organização limitam-se a um setor: aumentar as exportações e a influência econômica nas nações africanas e asiática onde tudo falta, e que até têm climas tropicais muito adequados para a produção industrial brasileira. Numa troca entre o Brasil e, digamos, São Tomé e Príncipe, é evidente a diferença da massa critica dos dois países e só a cordialidade diplomática permite que se tratem de igual para igual.
Quanto a Guiné, Moçambique, etc., países terceiro mundistas com enormes dificuldades básicas, a única coisa que esperam da CPLP é algum tipo de ajuda generosa, em nome de uma solidariedade pós-colonial.
Nestes vinte anos, o que assistimos foi Portugal a tentar, sem conseguir, ter alguma influência nos outros – e não consegue porque não tem meios nem estratégias para tal, desbaratando a ponte UE-África-América do Sul que lhe poderia trazer vantagens. E assistimos ao Brasil a exportar o que pode dos seus equipamentos tropicalizados para os africanos, sem lhes dar quaisquer concessões ou vantagens especiais. Apenas durante o Governo Dilma o país investiu nas infra-estruturas angolanas e moçambicanas, dominadas por cleptocracias que são as únicas beneficiárias das trocas.
Mas a machada final deste castelo de cartas e espelhos foi a entrada da Guiné Equatorial, em 2007. O país, além de dominado pela ditadura mais antiga do mundo, nem sequer fala português. A sua adesão foi comprada com alguns investimentos em Portugal, nomeadamente o entretanto falido banco Banif – assim como o ditador, Teodoro Obiang, investiu nas escolas de samba do Rio para conseguir a anuência brasileira. Se a CPLP era uma instituição vácua antes, com a entrada dum pais que nada tem a ver com os objetivos da organização, comprada a peso de ouro, tornou-se uma organização ridícula. Na cerimónia de entrada da Guiné Equatorial, que ocorreu em Timor Leste, o Presidente português foi ridicularizado pelo ditador, sem que a diplomacia lusa tomasse qualquer atitude. Obiang entrou na sala já como membro, antes da votação em que Portugal poderia ter levantado objeções – se levantaria, nunca se ficou a saber.
A sede da CPLP em Lisboa é um magnífico palácio, onde chegam em carros oficiais com motorista os diplomatas que conseguiram esse magnífico posto de representar a organização. Fazem discursos vazios, cheios de frases bombásticas, sobre uma tradição esquecida e vantagens nunca concretizadas. É isso, de fato, a CPLP.
Não admira, portanto, que ao celebrar-se os vinte anos da organização, numa cerimónia cheia de pompa e circunstância no Mosteiro da Batalha, Guilherme de Oliveira Martins, o português presidente do Centro Nacional de Cultura (um thinktank conservador) e administrador executivo da Fundação Gulbenkian, tenha afirmado que a CPLP “é uma instituição muito interessante”, mas “está claramente aquém das suas potencialidades e responsabilidades” na defesa da língua portuguesa.
“Há um campo extraordinariamente importante que tem de ser desenvolvido. Temos de trabalhar e trabalhar em conjunto”, apontou, lembrando que “Portugal é um país pequeno, com recursos mais limitados que outros porque não somos um país rico, mas com responsabilidades de grande potência”, concretamente na salvaguarda do português no mundo.
Oliveira Martins recusou-se a comentar a entrada da Guiné-Equatorial na CPLP – “é uma questão controversa” – mas lembrou que, na Universidade de Pequim, na China, um dos centros mais desenvolvidos é o que se dedica às línguas ibéricas.
“Isso não acontece pelos nossos bonitos olhos. É pelos interesses econômicos. Preocupam-se tanto pelo conhecimento das línguas ibéricas porque são línguas de grande desenvolvimento no mundo.”
Oliveira Martins recordou ainda que o português “é a língua mais falada no hemisfério sul e a terceira língua europeia mais falada no mundo”: “Hoje são 250 milhões de pessoas, mas à medida que a estatística linguística progride, mais falantes se descobrem, graças sobretudo à concentração territorial na América do Sul, nomeadamente no Brasil, um caso singularíssimo”. Singular mesmo, pois o Brasil conta com 4/5 dos falantes de português.
Até ao final do século, explicou, apenas cinco línguas se vão desenvolver de forma global: mandarim, hindi, inglês, castelhano e português. “No final do século haverá pelo menos 400 milhões de falantes de português. Até 2070, o maior crescimento do português irá verificar-se na América do Sul. Entre 2070 e 2100 será em África, designadamente na linha Huambo – Benguela.
“Daí a necessidade que temos de preservar a língua. Falar bem a língua, cultivar a língua, não é questão de gramáticos, é questão de cidadãos. Porque é o modo de nos fazermos entender. É um dever.”
Antigo ministro da Educação de António Guterres (entre 1999 e 2000), Oliveira Martins sublinhou ainda que “há poucas culturas que conseguem projetar-se em todos os continentes”, como acontece com a portuguesa:
“A nossa cultura projeta-se não pela capacidade de adaptação, mas pela capacidade de ir ao encontro dos outros e receber o contributo dos outros, enriquecendo a nossa própria perspetiva, a nossa própria cultura. A nossa identidade afirma-se aberta, complexa e diversa”.
Este é o tipíco discurso que alimenta os cocktails da CPLP. O atual secretario executivo, o diplomata moçambicano Murade Isaac Murargy, é um grande especialista em falar durante horas sem nada dizer de concreto – porque de fato não há nada de concreto para falar.
Ao fim de 20 anos, a CPLP é um exemplo de como uma boa ideia pode transformar-se em coisa nenhuma – por desinteresse, incompetência e inércia. Também nestes particulares os países da CPLP têm muito em comum.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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