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SÓ OS ANTI-HERÓIS NOS PODEM SALVAR

Não temos heróis, na Bíblia.
Em todo o texto bíblico encontramos as figuras dos anti-heróis.
Em todo o texto bíblico encontramos as figuras dos anti-heróis.
Por Felipe Magalhães Francisco*
A Bíblia é amplamente conhecida como Escrituras Sagradas, porque se agrega a ela um papel importante para a fé judaico-cristã. Ela se situa no horizonte da Palavra de Deus, porque foi composta a partir da experiência do povo com Ele, isto é, da leitura da história a partir da relação de Deus com o seu povo: essa leitura da história, para os que têm fé, é entendida como inspiração divina. Não obstante, ela carrega um valor literário impressionante e é um patrimônio cultural da humanidade, motivos que, por si só, fazem com que nos debrucemos sobre ela.
Chamo a atenção, aqui, para uma perspectiva literária da Bíblia. É próprio da literatura, em geral, ler o humano, ainda que esta não seja sua função. Se compararmos a Bíblia a outros grandes clássicos, tais como a Odisséia e a Ilíada, de Homero, perceberemos que as narrativas bíblicas fazem uma leitura do humano de uma maneira surpreendentemente original. Apenas um exemplo: em todo o texto bíblico encontramos as figuras dos anti-heróis, em contraste com os heróis de outros clássicos da literatura.
Não temos heróis, na Bíblia. As grandes personagens são marcadas de fragilidades que, por si só, configuram um anti-heroísmo. É o caso de Davi, o maior dos reis de Israel, justo, vitorioso e muito louvado pelo povo: foi levado pelas paixões e isso custou a vida de um homem leal, vítima do pecado do rei. Também Moisés, o grande agente da libertação do povo da escravidão no Egito: tinha dificuldades com a fala e, apesar dos sinais que realizava, o faraó não lhe dava crédito; mesmo o povo, várias vezes se revoltou contra ele, antes e depois da libertação. Não nos esqueçamos de Jesus, morto como um maldito, numa cruz.
Há, também, Sansão, juiz do povo de Israel, que era um homem de força extrema e, por isso, realizava grandes feitos em favor do povo. Sua força, porém, repousava em seus cabelos – Sansão era um consagrado ao Senhor e, por isso, tinha uma dieta restrita e não podia cortar os cabelos; dessa maneira, descumprir a dieta e/ou cortar os cabelos significaria romper com a consagração. A narrativa da história de Sansão é carregada de ironias e beira o absurdo: Dalila, sua mulher, várias vezes buscou saber qual era a origem da força do marido. Sansão respondia, a mulher revelava aos inimigos do marido, a emboscada falhava, e tudo se repetia. Por fim, a emboscada dá certo, quando os cabelos de Sanção são cortados e ele perde toda a sua força, tornando-se prisioneiro dos inimigos. O anti-heroísmo de Sansão é um paradigma para todos os juízes de Israel e para todas as grandes personagens.
 O anti-heroísmo bíblico traz em aceno importante, que nos ajuda na compreensão de nossa humanidade e das relações que estabelecemos a partir delas: as personagens que se destacam na história, pelos papéis que desempenham, não devem ser reconhecidas como heróis, ainda que esta seja uma tentação permanente dos grupos sociais. Reconhecer uma pessoa a partir da ideia do heroísmo é arrancar sua humanidade, que está marcada de fragilidades e de contradições. Atualmente, temos visto a sociedade brasileira, com grande incentivo da mídia oligárquica, eleger de modo ufanista os seus heróis, marcados com um messianismo irreal.
É bastante comum que as sociedades elejam seus bodes expiatórios, que carreguem toda a culpa pelo mau andamento das coisas. Acompanhamos isso de perto, sobretudo nos últimos tempos. Na ocasião, são eleitos, igualmente, os heróis, encarregados de extirparem esses bodes expiatórios e garantirem a boa ordem social. Os heróis da vez têm sido os juízes, fortemente blindados pela mídia e ungidos pela opinião pública, até que cumpram o papel esperado (justo ou não!). Não é estranho que, não raras vezes, assumam posturas de deuses, como temos acompanhado constantemente. Se alguma coisa, a esse respeito, a Bíblia pode ensinar aos crentes e aos não crentes é que os heróis não nos podem salvar, pois eles não existem! Valorizemos, pois, os anti-heróis: estes, sim, estão a serviço da humanidade, pois não negam suas contradições e fragilidades.
*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). Escreve às segundas-feiras.

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