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A ÉTICA DO CUIDADO

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Nossas éticas de cunho religioso ou humanista se encontram em situação de impotência.
A teologia se encontra em condições de provocar-nos à decisão de habitar poeticamente o mundo?
A teologia se encontra em condições de provocar-nos à decisão de habitar poeticamente o mundo?

Por Sinivaldo S. Tavares, OFM*

Na era da Tecnociência, do Mercado e da Mídia, testemunhamos uma situação de verdadeira “impotência da ética”. A ética se descobre incapaz de impedir a técnica na efetivação de suas possibilidades. “É inevitável – afirma o grande físico Stephen Hawkin – daqui a pouco, quando for tecnicamente possível, será realizado”. Tudo o que é possível de ser feito parece ter assumido, em nossos dias, legitimidade e, portanto, passa a ser buscado mediante uma espécie de compulsão mórbida.

Quando a técnica ainda era utilizada como mero instrumento, ela estava submetida à ética. De fato, a ética se destinava aos fins, enquanto a técnica se ocupava dos meios para a realização desses mesmos fins. Era, portanto, a ética que promovia a técnica, enquanto reservava para si a decisão dos fins que deviam orientar os processos técnicos. Em nossos dias, essa situação se inverteu. A tecnociência não necessita mais da ética para lhe prescrever as finalidades de seu operar. A técnica condiciona a ética no sentido de obrigá-la a tomar parte de uma realidade artificial. Os fins passam a ser os resultados dos procedimentos técnicos. O fazer como produção de resultados assume o primado do agir como escolha e decisão dos fins. A ética, portanto, encontra diante de si os resultados dos procedimentos técnicos e, sem tê-los escolhido, não consegue mais prescindir dos mesmos. Na “idade da tecnociência”, percebe-se o primado do fazer afinalista. Face à criação de um mundo cada vez mais artificial, produto das tecnologias contemporâneas, a ética não pode mais dispor de outro referente a não ser a contínua produção técnica.

Nossas éticas, amadurecidas no seio da tradição ocidental, tinham, sem exceção, um referente diverso: cosmológico (antigos), teológico (medievais), antropológico ou ideológico (modernos). Nossas éticas de cunho religioso ou humanista se encontram, hoje, numa situação de verdadeira impotência. Elas não conseguem transpor o universo das relações intersubjetivas para dar conta de uma realidade artificial que tem pretensões de universalidade e cuja extensão é, de fato, planetária.

Talvez fosse o caso de recorrermos a experiências e princípios éticos de nossos povos ameríndios como fizeram, recentemente, as Constituições Plurinacionais dos Estados da Bolívia e do Equador. Ambas as Constituições se inspiraram em princípios éticos das nações e povos Aimara, Quéchua e Guarani para elaborarem suas atuais Cartas Magnas. A Constituição do Estado Plurinacional do Equador reconhece os direitos da Terra como superorganismo, elaborando leis que tutelem a justiça ecológica e punam os responsáveis por delitos ambientais. A Constituição da Bolívia recupera e recria o “Bem viver” como princípio ético fundamental de seu Estado Plurinacional. “Bem viver” não é o mesmo que “Viver bem” entendido como “viver melhor”, lema de nossas civilizações ocidentais consumistas. “Bem Viver” implica em: priorizar a vida, retomar a unidade de todos os povos, aceitando e respeitando as diferenças entre os seres que vivem no mesmo planeta e priorizando os direitos cósmicos.

Importa hoje mais do que nunca salientar a reciprocidade entre a tutela da dignidade humana e a defesa da dignidade da Terra, concebida como um superorganismo e, portanto, a mútua implicação entre ambas. Toda vez que se ferem os direitos das demais criaturas e do planeta como um todo, acaba-se desrespeitando os direitos da pessoa humana. A natureza, entendida como o conjunto de todas as criaturas, deve ser protegida pelo que ela é e não enquanto depósito potencial à disposição do ser humano. O planeta e as espécies que nele habitam devem ser, portanto, protegidas em nome de uma dignidade que, para todos os efeitos, lhes é própria

Nesse sentido, somos convidados a expandir nossa compreensão de Direitos Humanos, a modo de círculos concêntricos. Assim, os direitos da pessoa humana serão considerados em sua relação com os direitos da Humanidade e com os direitos da assim chamada “comunidade de vida”. Esse conceito foi proposto pela “Carta da Terra” que o emprega com grande ênfase ao se referir às relações existentes entre as várias formas de vida no Planeta. Com isso não se quer anular as diferenças existentes entre eles; mas sim frisar que as distintas singularidades emergem justamente no bojo das inter-relações existentes entre todos os seres. Existe um parentesco com toda a vida, expresso na interdependência entre todos os seres, que se encontra na base da formulação do termo “comunidade de vida”. Pois como lemos na carta da Terra: “A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, é viva como uma comunidade de vida incomparável” (Preâmbulo).

Gostaríamos de salientar, neste contexto, a imprescindibilidade de se buscar uma cultura de paz no sentido proposto pela Carta da Terra, n. 16: “Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte”.

Seremos capazes, um dia, de habitar poeticamente o mundo? Nos inícios da Modernidade, o grande pensador Pascal colocava-nos diante de duas atitudes irreconciliáveis: l´esprit de géométrie e l´esprit de finêsse. Hoje, vemos com uma clareza meridiana, que a civilização ocidental, em seu afã de controle, enveredou-se descontrolada e voluptuosamente pelos caminhos da ciência e da técnica. Por termos decidido habitar tecnicamente o mundo é que ele se tornou o mundo da Tecnociência, do Mercado e da Mídia.

À distância de séculos, após ter cumprido a árdua tarefa de pensar a Técnica em suas raízes, o filósofo M. Heidegger explicitou dois possíveis caminhos disjuntivos: seguir habitando o mundo tecnicamente ou fazê-lo poeticamente. Habitar o mundo é decisão que diz respeito, em modo próprio, ao ser humano e somente a ele. Os demais seres, dotados de instinto natural, não habitam, eles são integrados ao ambiente que lhes é dado de antemão. As outras espécies possuem todas, sem exceção, cada qual seu nicho ecológico. Por não ter um ambiente próprio, perfeitamente adaptado a ela, a espécie humana experimenta uma imperiosa necessidade vital: ter de construir para si mundos como condição de sua própria sobrevivência. E esses mundos, o ser humano os constrói, sobretudo, na mediação da Linguagem.

A teologia se encontra, hoje, em condições de provocar-nos à decisão de habitar poeticamente o mundo? Existem afinidades intrínsecas entre a teologia e a poesia. A teologia cristã é evento de Linguagem. Nossa civilização é comumente caracterizada como niilista. A relação com a linguagem, hoje, parece ter-se invertido. Encontramo-nos enredados em um monólogo funcionalista que confunde verdadeiro com eficiente. Comportamo-nos como se fôssemos criadores e manipuladores da linguagem. A experiência do sentido parece ter-nos escapado por entre os dedos. Tornamo-nos incapazes de colher a Linguagem em sua expressão soberana: interpelação que nos provoca à escuta atenta e à generosa disponibilidade. Não caberia à teologia a rememoração dessas dimensões?

Gostaríamos de concluir nossa exposição com os versos de nosso grande poeta Fernando Pessoa: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É tempo de travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.

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