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"ORLANDO" É TODO DIA

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Milhares de LGBTIs serão assassinados cotidianamente desde a infância até a velhice.
A barbárie de Orlando é um crime contra a humanidade, e estará enganado quem julgar o contrário.
A barbárie de Orlando é um crime contra a humanidade, e estará enganado quem julgar o contrário.

Por Tânia da Silva Mayer*

Não há sentimentos que possam definir os acontecimentos dos últimos dias: a morte de “Orlando”. Uma cidade inteira foi assassinada numa boate, na calada da noite, quando a alegria da festa sobressaía-se às tristezas cotidianas que milhares de LGBTIs carregam consigo todos os dias. Sim, “Orlando” morreu. Sim, o Norte morreu. Sim, as Américas morreram. Morreu o mundo. Não é possível ficar indiferente à carnificina que assistíamos boquiabertos e entorpecidos pela crueldade humana. Trata-se de uma catástrofe promovida por mãos humanas, contra a humanidade. A barbárie de Orlando é um crime contra a humanidade, e estará enganado quem julgar o contrário. As razões que motivaram os atos mortíferos de um homem contra a humanidade virão, aos poucos, à tona revelando-nos o que já sabemos: “Orlando” é todo dia.

Milhares de pessoas LGBTIs são assassinadas todos os dias. E milhares de pessoas LGBTIs serão assassinadas cotidianamente desde a infância até a velhice. Morrerão pelas mãos de familiares, de amigos, de colegas do trabalho, da turma da esquina, do motorista do ônibus, do vizinho, do professor, do pastor e do padre da igreja, etc. Milhares de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, travestis e intersexuais são assassinados cotidianamente, unicamente por suas sexualidades divergirem à heteronorma. Esses assassinatos não escolhem a hora do dia para acontecer, de modo que, à luz do dia ou à escuridão noturna, eles insistem em ocorrer como eventos corriqueiros do dia a dia. Você deve estar se perguntando e insistindo comigo que “Orlando” é uma exceção pelos requintes de crueldade, mas gostaria de destacar que LGBTIs morrem aos poucos, e que cada hora da vida é uma hora de morte, explico: “Orlando” é a ponta de um iceberg cuja base reúne mortes simbólicas, psicológicas, linguísticas, religiosas e legislativas.

As pessoas LGBTIs são assassinadas cotidianamente de maneira simbólica quando são impedidas de transitar no universo simbólico de suas sexualidades. As novelas, os filmes, a literatura, a música, as artes, pouco (ou nada) narram o mundo dessas pessoas, de modo que elas são forçadamente expostas ao simbólico que, como os comerciais de margarina, reforça os padrões de heterossexualidade como moralmente bons para se obter uma vida bem sucedida e feliz. É um estupro cotidiano. As LGBTIs são assassinadas dia a dia de maneira psicológica quando são vítimas de xingamentos, de olhares tortos, de risinhos no canto dos lábios, de piadinhas vexatórias e de comentários cruéis, tal como o famoso: “posso participar?”. O crime psicológico, normalmente, tem início dentro de casa, quando pais, mães e irmãos tomam conhecimento da sexualidade divergente do padrão assumido na família. Daí que os primeiros golpes da chacina partem dos membros familiares que insistem com os mantras: “são aberrações da natureza”; “não é normal”; “normal é um homem e uma mulher”; “Deus não fez Adão e Ivo”; “é pura safadeza”; “melhor ter um filho morto ou bandido que um filho gay”. Cada frase embriagada de ódio é uma facada ou uma bala que rasga o peito das pessoas LGBTIs.

Parece-nos que os assassinatos contra LGBTIs se dão, muito particularmente, por motivações religiosas. Contudo, por razões religiosas fundamentalistas, concomitantes a uma precária leitura e interpretação dos textos sagrados e concorrentes ao ódio e à violência pregada por líderes ou grupos extremistas das religiões. As pessoas LGBTIs não somente são assassinadas por motivações religiosas, mas também são assassinadas religiosamente, quando são obrigadas a pensarem que o transcendente, o sagrado, Deus, não lhe diz respeito. A lei religiosa mata, desde a cabeça de líderes religiosos que disseminam a intolerância e o ódio desde seus púlpitos e altares, até fiéis loucos que utilizam a religiosidade como arma contra os diferentes, a ponto de afirmarem com respeito a “Orlando”: “É melhor assim, menos gays no mundo”. A lei civil é outra que mata, até que faça valer os inalienáveis direitos humanos. O desamparo legal às LGBTIs é o “tiro” social contra essa gigante minoria que não tem suas relações e demandas justificadas legalmente, bem como não tem quem as ampare diante dos muitos casos de violências sofridas por essas pessoas. No Brasil, ainda não há uma lei que puna com rigor criminosos por LGBTfobia. Como vimos, “Orlando” é o coroamento trágico do assassinato cotidiano de LGBTIs no mundo. O massacre daquela inesquecível noite sepultou vidas inocentes, de irmãos e irmãs nossos. O massacre cotidiano de LGBTIs no Brasil é, igualmente, a ceifa de vidas inocentes. Deveríamos nos envergonhar de sermos o país das Américas que mais mata pessoas LGBTIs por ano e por fobia às suas sexualidades. A vergonha deveria ser acompanhada de ações afirmativas que resguardam a vida dessas pessoas.

Diante desse holocausto moderno, com requintes de crueldade desmedida, a antiga tradição judeu-cristã parece iluminar o que a razão não é capaz de fazê-lo por si mesma: o sofrimento e as “mortes” a que o ser humano é exposto. O enigma do sofrimento e da morte, diante da coerência com a vida, ou, no sentido judeu-cristão, a coerência com a vida e com Deus, questiona e provoca os motivos para termos tanto pranto quando fomos chamados à festa da vida. Esse questionamento esteve presente na boca dos salmistas judeus e foi retomado pelos cristãos que também procuravam iluminar o assassinato do Justo, o Jesus de Nazaré. Tanto o povo judeu, como também Jesus, são os que padecem fiéis pelas mãos dos inimigos. E, mesmo na fidelidade a Deus, não deixam de ser mortos todos os dias, considerados como ovelhas de corte, destinadas ao matadouro (cf. Sl 44,23; Rm 8,36). Hoje, olhando para a população LGBTI no mundo, é impossível não fazer a triste analogia com a tradição judeu-cristã. Essas pessoas são mortas cotidianamente, consideradas como ovelhas destinadas ao matadouro dos símbolos, do psicológico, do religioso, do legislativo, da moral, da linguagem, corroborando nossa pesarosa afirmação de que “Orlando” é todo dia. Tem sido todos os dias. Luto.

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

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