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MIL DIAS COM FRANCISCO I

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A veia teológico-pastoral de Francisco, por meio de seus textos pontifícios.
Esse ano dedicado à misericórdia traz o tom do pontificado de Francisco.
Esse ano dedicado à misericórdia traz o tom do pontificado de Francisco.

Por Pe. Manoel Godoy*

Temos mais de mil dias de governo da Igreja Católica com o Papa Francisco. Quando alimentamos o sentimento de que tudo passa muito rapidamente, tem-se a impressão de muito pouco tempo. Porém, avaliando o que se pode fazer na vida em mil dias, dá-se conta de que é tempo suficiente para grandes mudanças. Por outro lado, há que se levar em conta o tempo da Igreja. Numa instituição bi-milenar, mil dias são como um minuto. Um parlamentar brasileiro, quando da decisão do Papa João Paulo II de declarar o perdão a Galileu, disse ironicamente: “A Igreja Católica é sábia porque age sempre 200 anos depois”. Deixando de lado a ironia, de fato, para a instituição o tempo tem sabor de eternidade e suas tradições a tornam muito pesada e lhe travam, muitas vezes, decisões que deveriam ser tomadas com maior agilidade.

Nessa perspectiva, o tempo vai passando e reformas profundas não acontecem, apesar da grande expectativa que o pontificado do Papa Francisco tenha criado com seus gestos e palavras, iluminados pelo seu lema contido no seu brasão papal: “Miserando atque eligendo” – “Com misericórdia, o elegeu”.

Vamos elencar algumas movimentações do Papa Francisco para nos aproximarmos de uma avaliação mais objetiva de um pontificado que tem empolgado muita gente, dentro e fora da Igreja.

A Primeira Carta Encíclica do Papa Francisco (Lumen Fidei – sobre a fé) não causou qualquer impacto, pois datada de 29 de junho de 2013, distante apenas alguns meses de sua gestão frente à Igreja, ainda trazia as marcas do Papa emérito. Na verdade, o próprio Francisco declarou ser um documento escrito a quatro mãos. Já a sua primeira Exortação Apostólica (Evangelii Gaudium – sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual – 24/11/2013) tem sabores novos e trás a proposta de renovação da Igreja no campo da evangelização. Fica clara a intenção de Francisco de por em movimento na Igreja uma renovação mais profunda calcada na volta a Jesus e ao Evangelho. “Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual” (EG 11). E ele é contundente nessa direção, pois afirma que nesse caminho não se deve ter medo de arriscar em busca de novas perspectivas eclesiais: “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49). E nesta proposta de uma “Igreja em saída”, Francisco tem um rumo claro: “Sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20). Em diversos números da Exortação, Francisco se serve do vocábulo periferia para expressar esse movimento centrífugo que deve transformar a Instituição numa “Igreja em saída”. Como a Exortação se parece a “uma verdadeira apostila missionária com imperativos e convites, dicas metodológicas e pedagógicas interligadas”, segundo a fala do teólogo Paulo Suess, podemos ainda esperar que ela produza frutos mais permanentes na ação evangelizadora da Igreja.

Sua segunda Carta Encíclica (Laudato Si – sobre o cuidado da casa comum – 24/05/2015) provocou reações bastante controversas na Igreja e na sociedade. Foi mais bem aceita no meio de todos os que lutam por um respeito maior ao planeta e também por instituições significativas mundiais. Porém, não faltaram críticas de mineradoras e líderes políticos, tal como a declaração de Jed Bush, irmão do ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, depois de haver participado de um retiro de pesca e golfe patrocinado por empresas de carvão: "espero não ser castigado pelo meu padre por dizer isto, mas não recebo conselhos econômicos dos meus bispos, do meu cardeal ou do meu papa".

O certo é que a segunda Carta Encíclica do Papa Francisco dá uma nova perspectiva à Doutrina Social da Igreja por incluir a preocupação com a totalidade do planeta na lista das suas preocupações sociais. O termo ecologia integral abre novas frentes de trabalho para todos os que se empenham na defesa da vida para todos os organismos vivos que convivem na casa comum, que é o planeta terra. O Papa Francisco propõe uma visão mais consistente dos fenômenos ambientais, sociopolíticos e culturais, evitando a concepção fragmentada dos processos que envolvem todos os organismos vivos. Ressalta que tudo está interligado, pois “o que acontece numa região influi, direta ou indiretamente, nas outras regiões. Assim, por exemplo, o consumo de drogas nas sociedades opulentas provoca uma constante ou crescente procura de produtos que provêm de regiões empobrecidas, onde se corrompem comportamentos, se destroem vidas e se acaba degradando o meio ambiente” (LS 142).

Sua segunda Exortação Apostólica (Amoris Laetitia – sobre o amor na família – 19/03/2016) foi fruto de uma árdua quebra de braço entre as perspectivas mais abertas de Francisco com a posição tradicionalista de vários cardeais, que se reuniram para lhe fazer frente e até buscaram o apoio do Papa emérito. O fato é que a Exortação trouxe sim alguns avanços, um tanto tímidos, mas que abrem perspectivas para uma pastoral familiar inclusiva. Afirma Francisco, ao tratar dos casos de batizados divorciados e recasados: “A lógica da integração constitui a chave do seu acompanhamento pastoral, para que não somente saibam pertencerem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas possam fazer uma experiência feliz e fecunda da mesma” (AL 299). O que mais irritou os que queriam uma posição definitiva e fechada do Papa foi o fato de ele se negar a determinar “uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos” (Al 300) e abrir a possibilidade de considerações personalizadas, caso a caso, por reconhecer que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos” (Al 300). Na verdade, o que Francisco evitou foi declarar uma norma absoluta, abstrata, proibindo os divorciados recasados de se aproximarem da comunhão. Também não autorizou de forma geral que isso ocorresse, mas ressaltou que não há norma geral porque os casos não são iguais. Reconhece que “É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares” (Al 304).

A bem da verdade, a Exortação ficou aquém das expectativas dos grupos mais liberais e foi muito além do esperado pelos grupos tradicionalistas. O Papa Francisco tem consciência disso e, por isso, tenta uma conciliação: “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o riso de sujar-se com a lama da estrada” (AL 308).

Em termos de conjuntura interna, um dos documentos de Francisco que mais repercutiu e que ainda está tendo dificuldades para ser aplicado nas Dioceses é o Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus – sobre a reforma do processo canônico para as causas de declaração de nulidade do matrimônio no Código de Direito Canônico. Este documento tem como objetivo ir ao encontro dos afastados da Igreja por problemas jurídicos quanto ao matrimônio. Para isso, o documento pede que os processos de declaração de nulidade do matrimônio sejam mais céleres, marcados por uma justa simplicidade.

Por fim, na linha dos documentos, temos a Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia – Misericordiae Vultus – o rosto da misericórdia. Esse ano dedicado à misericórdia traz o tom do pontificado de Francisco, como já aparece no seu brasão papal.

[Continua...]

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*Pe. Manoel Godoy: Professor de Teologia.

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