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Padre Reginaldo Manzotti na Bienal do Livro em São Paulo

Veja a cena: a espingarda apontada no rosto dela. Quase três quilos de arma. Apavorada diante da morte, a jovem pensa nas poucas coisas valiosas que acumulou na vida: cada um dos sete filhos. Onde estão agora? No barracão? Choram diante da ameaça? Assustados, fugiram de vez? O marido, trêbado, voltou da noitada decidido: encerrará de uma vez por todas o horror da existência. Dispara uma vez contra a esposa, e nada. A mulher levanta da cama e se joga no chão, com as mãos para cima, clamando ajuda de Deus. Convocado, o Todo-Poderoso não dá as caras. E o marido volta a disparar pela segunda vez, novamente sem sucesso. A reza fica mais forte: ela já pede pelo Divino Espírito Santo e outras figuras religiosas. O marido puxa o gatilho pela terceira vez, e a arma não dispara. Milagre ou falta de lubrificação? O marido arremessa a espingarda para longe e, aos prantos, se ajoelha à beira da cama. Parece cena de filme policial, mas é só um dos momentos sinistros vividos pela dona de casa Rosalina da Silva, 64 anos.

Sentadinha na banqueta, de sorriso fácil e prosa escancarada, Rosalina nem parece surpresa com a dimensão cinematográfica da sua própria biografia. Talvez porque ela saiba que, à sua volta, outras donas de casa colecionam histórias semelhantes de horror e desespero, com triunfais desfechos "milagrosos". "Mesmo assim, continuei casada. Só separamos depois de muito tempo. E no fim da vida dele, quando teve um derrame, eu o acolhi e cuidei com carinho. Até ele morrer", comenta, enquanto espera a chegada do padre Reginaldo Manzotti, no shopping Catuaí, para o lançamento do livro "Encontros".

Olhe em volta: velhas, muitas velhas. Quatrocentas e poucas velhas? Velhas quase todas muito pobres, aglomeradas em volta de um palco, no mesmo espaço do shopping onde, há algum tempo, havia um supermercado. Com a crise, o supermercado fechou as portas e o espaço, agora, serve de teto às velhas com camisetas estampando a foto do padre-cantor. Para participar da palestra-show-monólogo-bênção-louvação-missa-adoração, era necessário desembolsar R$ 24,90, que dava direito ao livro.

"Com o padre Reginaldo, minha vida ficou mais feliz. Sou sócia dele há dez anos", comenta Rosalina. "Os R$ 100 que minha filha me dá todo mês, repasso pra Igreja: uma parte pra Rádio Colméia, um pouco pro dizímo e outra parte pra entidade Evangelizar É Preciso, do padre Reginaldo."

Faço as contas mentalmente: "A senhora sabe que já gastou R$ 12 mil com isso?", pergunto.

Rosalina parece tomar um susto, parece ouvir a coisa mais assustadora do mundo, talvez assuma, agora, as mesmas feições daquela noite em que seu ex-marido lhe apontava a espingarda. Mas ela se concentra e, aos poucos, volta ao normal. "Claro que eu sei. Mas... A gente tem que doar, né?"

Dinheiro na mão...
Outra dona de casa - também de nome florido -, Rosa Bernardes, 48, justifica os tantos gastos. "Em troca, a gente ganha muitas coisas. Sendo sócia do padre, todo mês ganho jornalzinho e medalhinhas de Nossa Senhora", gaba-se. Toda serelepe, ela conta que o padre a salvou da depressão há exatamente sete anos – o tal número sagrado. "Eu só chorava e dormia", recorda. Tudo mudou quando, numa tarde, Rosa escutou a missa de tarde no radinho de pilha. "O padre falou bem assim: 'Mulher, sei que cê tá doente. Isso é depressão'. Nessa hora, nem dei bola. Porque sei do monte de gente que escuta ele no rádio. Daí, o padre Reginaldo continuou. 'Mulher, sei que cê não acredita que eu tô falando com você, mas eu tô.' E disse assim: 'Solta essa panela, mulher, vem rezar comigo que vou curar tua depressão!'", lembra, toda emocionada, mostrando os braços arrepiados. "Como o padre Reginaldo sabia que, naquela horinha, eu tava preparando a janta?! Através do Espírito Santo, o padre falou comigo!", acredita.

Pergunto se durante o diálogo radiofônico, o padre-cantor mencionou, em algum momento, o nome dela. "Isso ele não disse. Mas sinto que falava pra mim. A gente tem que acreditar, né? Quem tem fé crê até de olhos fechados." Depois da tal conversa com o padre, Rosa (e quantas outras ouvintes infelizes que preparavam a janta?) correu para se inscrever na entidade do padre-cantor, passando a desembolsar, mensalmente, R$ 10 (total gasto até hoje: R$ 840).

Viajar é preciso
O lançamento do livro está marcado para as sete da noite. Às sete e quinze, nem sombra do autor. Vasculhando informações sobre ele no celular, descubro que é um grande viajador. Quem investe R$ 16.104 (até 10 x sem juros Master/Visa) pode se dar ao luxo de peregrinar na Terra Santa e Itália, durante 13 dias, ao lado do padre-cantor. O pacote dá direito às seguintes regalias: quartos duplos com banheiro privativo (para quarto individual, consultar valores); hospedagem em hotéis de categoria turística; ônibus de luxo com ar-condicionado ou aquecedor; voo em classe econômica (para classe executiva, consultar acréscimo); além de café da manhã, almoço e jantar.

"O padre Reginaldo vem fazendo essas viagens há três anos. Ele é o diretor espiritual dos turistas: conversa com os fiéis dentro dos ônibus e acompanha nos passeios. A próxima será em maio de 2017", convida, por telefone, a curitibana Sandra Pondaco, funcionária da associação do padre-cantor. Minha conversa a distância é interrompida por uma quarentona vestida de colete amarelo. Na mão, prancheta, canetas e jornalzinho.

"Quer fazer parte da entidade do padre?" 

"Que entidade?" 

Ela já arma a prancheta e estende um jornalzinho.

"Associação Evangelizar é Preciso." "Dá direito a quê?"

"Jornal mensal e mimos do padre Reginaldo." "Mimos?"

Pego o jornalzinho na mão: papel bom, páginas coloridas, deve custar uma grana preta. "Medalhinha de santinho, essas coisinhas."

"Quanto custa?" 

"Você doa o quanto puder." 

"O dinheiro vai pra onde?" 

"Rádio, TV, nossos projetos." 

"Me dá seu nome e endereço que já te inscrevo rapidinho. A doação é sempre no fim do mês, tá?" 

Digo que vou pensar melhor, e a mulher, ligeira, toma o jornalzinho das minhãs mãos. Peço um exemplar grátis: "Pra levar à minha mãe, talvez ela vire mensalista", explico.

A mulher escancara sorrisão e me devolve o JORNAL DO EVANGELIZADOR - com título em caixa alta. A edição de maio é composta por vinte páginas. Nelas, a foto do padre-cantor surge 30 vezes. Curiosa, essa onipresença: o autor do livro "A beleza de Deus está em toda parte" aparece mais vezes que Jesus (onze desenhos) e Maria (nove). No JORNAL DO EVANGELIZADOR, todos os textos das páginas 3, 4 e 5 tentam, a todo custo, convencer os leitores-fiéis a continuarem as doações. "Você sabe a diferença entre infarto e AVC?" e "A mãe de Fátima, mãe da paz" são alguns dos textos interessantíssimos das páginas seguintes. Na seção "receita do mês", o leitor aprende, inclusive, como preparar um pastel assado em vinte minutos.

Padre popstar
Com quase meia hora de atraso - mesmíssimo atraso dos grandes deuses do rock -, o padre-cantor surge cantando. É um berreiro infernal. Velhas esgoelam o nome do padre-cantor, gritam por Deus, Jesus, Maria, Jeová, Meu Senhor, Santíssimo Sacramento, Santíssima Trindade, e tentam se aproximar do palco com o mesmo furor de jovens beatlemaníacas, tirando selfies e gravando vídeos. O topete do padre-cantor é ainda maior do que nas fotos de divulgação: sete metros só de topete. Quanto gel é preciso para deixar, duríssimo e durão, tudo aquilo ali? - velhas se questionam em silêncio e riem, sozinhas, das perguntas indiscretas que nunca farão.

Em meio a dois grandes posteres ostentando sua foto, o padre-cantor posiciona-se a frente do palco, dividindo espaço com tecladista, violonista e backing vocal. Recebe os aplausos pela canção entoada e, enquanto o tecladista executa acordes tristíssimos, ele engata conversa com os fãs.

"Há muito tempo, quando comecei na igreja, me disseram bem assim: 'Padre, o senhor terá que rezar uma missa dentro de um shopping'. Quando ouvi aquilo, achei um absurdo, esquisito. Hoje, nós estamos dentro de um shopping center falando de Deus!", comenta, sob aplausos e gritos delirantes. E vai logo explicando: "Gente, hoje eu não vou autografar os livros. Não que eu não goste de assinar, mas a gente tem que prezar pela otimização da vida. Nesses eventos, tem gente que fica aí três, quatro, cinco horas na fila só pra receber a assinatura de algum padre... Essa noite, eu não lhes ofereço autógrafo. Eu lhes ofereço muito mais: eu ofereço um encontro com Jesus", promete.

Sou tomado por uma felicidade transbordante. É hoje, finalmente, que estarei frente a frente com Ele. Vou organizando as tantas perguntas – tenho 666 questões para Deus. Em seguida, o padre-cantor fala sobre o livro que traz em mãos. Pede que os leitores abram na página tal para rezar uma determinada oração.

E vai logo questionando: "O que vocês querem de Deus? É só milagres? Gente, curandeiro não faz milagre! Pastor não faz milagre! Qual Jesus você quer? É o que virou sinônimo de cifrão? É o dessa catequese mal feita, com católicos que são evangélicos, que são da Seicho-No-Ie, do sei não sei o quê? Que Jesus é esse? O meu Jesus é o da Bíblia", diz, abraçado ao próprio livro.

Conselhos amorosos
Durante o monólogo, o padre-cantor encarna até mesmo um consultório sentimental. "Se o teu casamento é ruim, volte ao primeiro grande amor", incentiva, para delírio de velhas apaixonadas. Indignado com as relações amorosas do mundão de hoje, ele desabafa: "Uma moça estava conversando comigo, criticando o casamento, falando que o marido aprontava isso e aquilo... Gente! Putaria, hoje, é o quê? Desculpe o vocabulário, mas a coisa tá feia, viu? Se não cuidar, dentro da igreja começa a ter for-ni-ca-ção! Se não cuidar, tem sexo até dentro da família! As pessoas perderam a noção do certo e do errado", afirma, antes de cantar uma música que repete, à exaustão, dezenas de "aleluia".

O padre-cantor avança noite adentro, mas, quase uma hora depois do início, nada da presença Dele. Uma pena. Seria interessante trocar um dedo de prosa com o Criador, em pleno templo do consumo. Às velhas ao meu lado, pergunto quando Deus aparecerá. Dão de ombros, frustradas com a ausência divina.

"Pedro era um homem tosco!", assegura o padre-cantor, com tom severo e seguro. Ele se dá conta da força da afirmação e revela detalhes minuciosos do personagem bíblico: "É verdade! Pedro tinha a unha encravada e suja de barro", garante. Duvida, você, disso tudo?

"Quem foi comigo para a Terra Santa e Itália, passando nos locais onde Pedro vivia, sabe disso tudo", ostenta o padre-cantor, escancarando um sorrisão, diante das pobres donas de casa que nunca viajaram para o exterior nem jamais cogitariam uma viagem do tipo.

Armado com chicotes espessos, Deus - se de fato existisse - não expulsaria, com golpes furiosos, os vendilhões do templo? Uma lástima, Ele ter faltado esta noite.

Viva Maringa

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