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'DEVEMOS LEVANTAR A VOZ CONTRA OS FUNDAMENTALISMOS', DIZ RAINHA EM ENTREVISTA

 domtotal.com
Grupos extremistas não têm nada a ver com a fé.
Grupos extremistas não têm nada a ver com a fé.

Por Antonio Ferrari*

É uma mulher que muitos sonham em ter como esposa, como filha, como mãe, como irmã. Eu tenho que admitir que a sua beleza não é nem mesmo a sua primeira qualidade. A rainha Rania da Jordânia é inteligente, culta, generosa, profundamente humana. É uma mulher de verdade, uma muçulmana que sabe e testemunha o que significa Islã, religião de vida e não de morte.

À espera de chegar à Itália, em Florença, para receber, no dia 11 de setembro, durante o evento beneficente Celebrity Fight Night Italy, o Humanitarian Award de Andrea Bocelli, ela decidiu me conceder uma entrevista exclusiva e – dados os tempos difíceis – muito rara, para o Corriere della Sera, que a acolheu em 2001 em Milão, na Via Solferino. Mas é também a confirmação do grande sentimento de admiração e de amor que Rania alimenta pela Itália.

Eis a entrevista.

Majestade, o mundo está em crise, com violência e confusão que ameaçam a nossa vida cotidiana. A senhora é uma mulher corajosa, uma otimista nata. O que pensa que cada um de nós deveria fazer para encontrar um pouco de calma e serenidade?

Sim, parece que cada semana nos traz algum novo horror. O terrorismo, as pessoas que se explodem e outros fatos indiscriminados de violência criaram uma nova realidade global que não apenas ultrapassa as fronteiras nacionais, mas, como você lembrou, também os limites pessoais da nossa vida. Os últimos meses nos deixaram a sensação de que estamos todos na linha de frente. Os civis inocentes não são mais os "danos colaterais", mas sim "alvos procurados". O medo é uma reação natural e razoável, mas pode inspirar pensamentos e ações irracionais. Ele influencia as decisões que tomamos: para onde viajar, em quem votar, que valores e princípios são mais importantes para nós: se deixarmos que o medo leve a melhor, ele vai minar a confiança, a abertura aos outros, a cooperação... E, em última análise, o progresso humano. É por isso que eu acho que é fundamental que nos lembremos de que os nossos valores e as nossas convicções são mais fortes do que os dos extremistas. E é igualmente importante que não nos tornemos insensíveis, que não percamos a nossa compaixão e a humanidade, e que permaneçamos motivados o suficiente para querer mudar as coisas, ou ao menos para tentar mudar.

A senhora, majestade, criou importantes projetos de apoio a mulheres e crianças. É assustador ver tantas vítimas jovens em tantas guerras sem sentido do mundo. Estamos chocados com a injustiça de tudo isso. O que diria aos seus filhos menores? O que deseja fazer para protegê-los?

A magnitude das tragédias mais recentes é inimaginável, e as crianças, os menos responsáveis pelo conflito, muitas vezes pagam o preço mais alto. A minha primeira reação é a raiva: este é um mundo que despojou milhões de crianças da sua infância. Mas, depois, a infância passa, e a urgência e a responsabilidade de reagir levam a melhor, e é isso que eu compartilho com os meus filhos, lembrando-lhes de que eles são privilegiados, e com o privilégio vem a responsabilidade de ajudar aqueles que não são igualmente sortudos. Eu falo com eles de empatia, de como eles nunca devem perder de vista as histórias pessoais e o sofrimento que está por trás de notícias e dados estatísticos e, acima de tudo, que cada gentileza tem a sua importância, não importa o quão pequena.

A Jordânia é um reino muito generoso e tolerante. Sua Majestade, o Rei Abdullah, declarou que quase um quarto da população é composta por migrantes e refugiados. No passado, vocês acolheram muitos iraquianos; hoje, estão fornecendo um lar para os sírios. Como é que o seu país pode sustentar tal compromisso financeiro?

A Jordânia sempre foi um refúgio para todos aqueles que fogem da violência. Até onde eu me lembre, a região do Oriente Médio sempre esteve em algum tipo de agitação. Hoje, estamos hospedando 1,3 milhão de refugiados sírios por causa do conflito na Síria. No passado, acolhemos os palestinos, depois os iraquianos e outros, tornando a Jordânia o segundo maior hóspede de refugiados – per capita – do mundo. A nossa decisão de permitir o ingresso de refugiados nunca foi estratégica ou política. Se tivéssemos contado com a escolha racional e lógica, não teríamos acolhido nenhum refugiado. Simplesmente porque não temos recursos suficientes para compartilhar. A nossa decisão, portanto, foi humanitária e moral. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para dar a esses refugiados abrigo e oportunidades, mas a Jordânia é um dos países mais pobres da região, e a nossa capacidade de enfrentar foi duramente posta à prova, até o ponto de ruptura.

O que a senhora quer me dizer, majestade?

Que esse é o motivo pelo qual convidamos a comunidade internacional, várias vezes, a contribuir e ajudar a Jordânia a enfrentar o enorme estresse que pesa sobre a economia, sobre a infraestrutura e sobre os recursos. Os doadores foram generosos, mas as exigências superam muito, em quantidade e rapidez de evolução, esses números.

A senhora é uma convicta defensora da educação. Eu penso em todas as crianças refugiadas do seu país, que não podem se lembrar quando brincavam com os seus jogos, mas estão acostumadas com o barulho das explosões e viram apenas armas e sofrimentos sem fim. O que pode ser feito para salvar essa geração?

A educação é a sua saída. Não há dúvida de que cada dia passado fora da escola é um dia roubado do potencial de uma criança. As crianças têm mais necessidade de formação, especialmente em situações de emergência como essas. Quando elas têm medo e sofrem, quando perderam os seus entes queridos, quando se encontram em lugares estranhos, perseguidas pelos pesadelos, quando viram coisas que nenhuma criança jamais deveria ver, é justamente então que elas precisam da rotina do dia escolar, a distração das aulas, o riso no parque infantil e a esperança de um futuro melhor. Acredite-me, estou muito contente que a Jordânia recentemente recebeu os fundos necessários para hospedar outras 90.000 crianças sírias, que tinham ficado fora da escola e, ao contrário, vão voltar para as aulas neste ano. Elas se somam às 145.000 crianças sírias que já se encontram nas nossas escolas desde o ano passado. Esse é um começo, mas, para evitar ter uma "geração perdida", deve ser feito um trabalho ainda maior. Essas crianças foram testemunhas de horrores indizíveis, e muitas ficaram feridas fisicamente, psicologicamente ou de ambas as maneiras, o que torna muito fácil que elas percam a esperança. As suas vidas foram destruídas em muitos níveis. A cura será um processo enormemente complicado. Com a ajuda de agências humanitárias internacionais e de doadores privados, preparamos programas de terapia psicossocial para as crianças sírias e para os adultos nos campos e em todo o país, para ajudá-los a enfrentar aquilo que viram, experimentar e olhar para a frente, rumo a um futuro mais promissor.

Majestade, o reino da Jordânia está pagando um preço muito alto pela sua generosa proteção dos refugiados – em termos financeiros e sociais –, e isso está afetando todos os setores da sociedade. A senhora pensa que o seu país será capaz de sustentar tal esforço no longo prazo?

Não. Atingimos o nosso ponto de ruptura. Infelizmente, a Jordânia é um país pobre em recursos, e não podemos nos encarregar de um desastre humanitário tão enorme sozinhos. Enquanto a comunidade internacional, por ocasião da Conferência dos Doadores de Londres, em fevereiro, tinha prometido três bilhões em ajudas, ainda devemos receber a maior parte desses fundos. O povo jordaniano também está pagando um preço alto, porque a nossa infraestrutura pública e social foi levada à exaustão. Vocês devem entender que a crise dos refugiados na Jordânia não se restringe aos campos de refugiados. Mais de 90% dos refugiados vivem em vilarejos e cidades, exercendo uma enorme pressão sobre as nossas escolas, hospitais, serviços comunitários e muito mais. Apenas 35% do custo dos refugiados foi apoiado pela comunidade internacional, e o governo jordaniano teve que preencher a lacuna, com mais de um quarto do nosso orçamento. Os países em desenvolvimento, incluindo a Jordânia, hospedam 86% da população de refugiados do mundo, enquanto os seis países que, juntos, somam 60% da economia mundial hospedam menos de 9%. Esse é um doloroso desequilíbrio. A situação é insustentável, e é por isso que estamos trabalhando para difundir e orientar uma nova abordagem para a crise dos refugiados na Jordânia. Se formos bem sucedidos, ele poderia ser replicado por outros países de acolhimento. Instituímos 18 zonas econômicas especiais, com incentivos às empresas, para encorajar as multinacionais a virem para a Jordânia e criar postos de trabalho e oportunidades tanto para os jordanianos, quanto para os refugiados sírios.

A Jordânia também pagou um preço muito alto para o terrorismo. Como podemos parar os ataques dos fundamentalistas? Sua Majestade, o Rei Abdullah, e a senhora mesma condenaram, com razão, essa violência sem sentido, dizendo que ela não tem nada a ver com o Islã. O Papa Francisco, com quem a senhora se encontrou, afirma que não há guerra entre as religiões, mas em cada religião parece haver um elemento extremista. Está de acordo?

Acima de tudo, gostaria de dizer que admiro realmente o trabalho que o Papa Francisco fez e faz para fortalecer os laços entre as fés. Ele é um modelo para o diálogo inter-religioso e a convivência. A sua voz é tão necessária no mundo fragmentado de hoje. Precisamos de um maior número de vozes como a dele. Agora mais do que nunca. Tanto Sua Majestade quanto eu repetimos muitas vezes que esses grupos extremistas não têm nada a ver com a fé. E tudo, ao contrário, com o fanatismo. Eles fizeram do Islã um refém, para promover os seus programas e para nos dividir. Desse modo, aliás, exploraram uma religião cujos fundamentos são a paz, o perdão e a tolerância. Por causa da sua ideologia violenta, eles desencadearam uma onda global de islamofobia, que se baseia em uma percepção equivocada e preconcebida do Islã e dos muçulmanos. Os resultados alimentam os objetivos do inimigo: eles querem ver o mundo civilizado dividido. Eles querem que o mundo marginalize os muçulmanos e que esses muçulmanos, por sua vez, se submetam às suas campanhas de recrutamento. Sim, eu acredito que é importante lembrar que cada religião tem os seus fundamentalistas, para os quais a intolerância continua sendo uma bússola, mais do que a fé. Como muçulmanos, temos a responsabilidade de levantar a voz contra esses extremistas e de falar livremente e sem medo dos verdadeiros ensinamentos do Islã. Não podemos ficar em silêncio diante de tanta injustiça.

Depois do assassinato de um padre católico em Rouen, muitos muçulmanos na França, na Itália e em outros países participaram da missa do domingo em solidariedade com os cristãos. A senhora acha que esse pode ser o caminho certo a ser tomado para isolar aqueles extremistas que utilizam a religião para os seus interesses?

Veja, esses grupos extremistas declararam como seu inimigo todo o mundo civilizado. Portanto, devemos estar unidos, todos juntos, na luta contra eles. Quanto mais eles atribuem as suas ações ao Islã, mais eles provocam intolerância contra todos os muçulmanos amantes da paz. Na prática, nós não só temos medo dos terroristas, mas também começamos a temer uns aos outros. Por isso, os atos de solidariedade que você menciona são tão importantes. Vimos também, em muitas partes da Europa, inúmeros atos de solidariedade de pessoas comuns para com os refugiados muçulmanos. Os muçulmanos de todo o mundo compartilharam o luto da França e, no luto, todas as tragédias que foram infligidas aos inocentes. A comunidade muçulmana rejeita fundamentalmente esses atos de violência. Acho que você sabe que os muçulmanos sofreram até 97% das fatalidades relacionadas com o terrorismo, nos últimos cinco anos. Dezenas de milhares de muçulmanos foram mortos por grupos extremistas. Esperamos que cada vez mais pessoas no mundo queiram manifestar a sua solidariedade também a eles. É essencial que nós não joguemos mais lenha na fogueira da discórdia, como os extremistas fazem.

Majestade, sempre que a senhora vem à Itália, as pessoas ficam entusiasmadas e viajam longas distâncias para vê-la. A Itália a ama, mas eu sei que o sentimento é recíproco. O que a senhora mais gosta do nosso país?

Obrigado, eu realmente aprecio muito isso. Como você sabe, o motivo mais importante pelo qual eu volto muitas vezes para a Itália são as pessoas. Os italianos sempre foram muito gentis, e a sua generosidade de espírito tem o poder de fazer qualquer um voltar. O amor pela vida que os italianos têm é contagioso. E, depois, naturalmente, há a beleza daItália. Há realmente muito para se admirar no seu país. Eu sinto uma forte e contínua emoção, simplesmente pelo fato de caminhar nestas ruas pavimentadas com pedra, admirando a arquitetura e a arte deixada de herança pelo Renascimento, que imprimiu na humanidade e na civilização o seu grande impulso evolutivo. E por fim: quem pode resistir à cozinha italiana? Eu espero que muitos italianos vão visitar a Jordânia, talvez dando um passeio ao longo das antigas cavidades na rocha de Petra e, depois, flutuar nas águas do Mar Morto, para ver as belezas do meu país, gozar da hospitalidade jordaniana e degustar, acima de tudo, as nossas deliciosas especialidades gastronômicas.

Obrigado, majestade, por esta entrevista.

Obrigado a você.

Corriere della Sera. Tradução de Moisés Sbardelotto / IHU

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