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Para tirar a televisão da caverna

Por Alexis Parrot*

O busto de Platão.
O busto de Platão.
No seu "República", Platão nos guia pela história de três homens, aprisionados em uma caverna desde o nascimento, fadados a ver o mundo e as coisas do mundo apenas em sombras projetadas por intermédio de uma fogueira. Pálida noção da vida tinham essas três criaturas, porém, essa era a única referência que possuíam - daí a impossibilidade de se rebelar ou de reclamar da situação. A ignorância era a única perspectiva a que tinham acesso.
Quando um dos camaradas consegue se livrar das correntes e sai para ver o mundo com os próprios olhos, entende o quanto estavam se enganando (e sendo enganados) durante todos aqueles anos. O curioso é que, ao voltar à caverna para alertar os amigos, eles não acreditam nele e nas narrativas que lhes conta sobre tudo que se passava fora dali. Preferiram a segurança do simulacro ao desafio e beleza de encarar a vida de frente.
Estar na caverna de Platão é como assistir ao telejornalismo brasileiro hoje, de maneira quase generalizada; leve sombra da realidade que se apresenta como realidade. Parcialmente ideológico e corrompido comercialmente, é uma afronta ao país.
Muito se discute ainda sobre a força que teria a TV aberta em um mundo teoricamente conectado e globalizado pela web e redes sociais. A discussão é precária e inconsistente, já na largada, se pensarmos que aproximadamente dois terços da população brasileira ainda não têm acesso à internet.
Outro argumento: como o candidato ungido (aquele que bateu na mulher) pelo prefeito Eduardo Paes para a sua sucessão, conseguiu chegar ao segundo lugar nas pesquisas eleitorais no Rio, empatando tecnicamente com Marcelo Freixo, senão pela força da propaganda eleitoral gratuita na televisão? Foi a essa marca que o lamentável Pedro Paulo chegou em apenas uma semana, com a estreia da campanha televisiva como único fato novo do pleito no período.
Sim, a TV aberta é ainda um gigante a ser respeitado. Mas um gigante que se apequena mais e mais se focarmos na situação em que vive a TV pública brasileira hoje. Nas duas emissoras com alcance nacional, a situação é desanimadora.
Na TV Cultura, relevantes cortes de orçamento e de pessoal têm sido impostos pelo governo do estado de São Paulo - impedindo a estreia de novos programas ou mesmo o aperfeiçoamento daquilo que já está no ar. De quase 20 estreias (entre novidades, reformulações e novas temporadas) programadas para este ano, nenhuma acabou acontecendo até agora.
Na TV Brasil o contexto é mais alarmante ainda. O que se trama nos corredores do governo golpista é o desmoronamento total do projeto.
Em momentos de graça, devemos agradecer... em tempos de perigo, cabe lutarmos e até ansiarmos por todo tipo de intercessão.
Não podemos chegar a dezembro, no dia 13 (data muito especial, por motivos daqueles que mudam mesmo a nossa vida e marcam), para celebrarmos Santa Luzia, padroeira da visão e dos olhos, canal principal de acesso nosso à TV, de braços cruzados frente a esse estado de exceção que vem se impondo à nossa televisão. Ela, que preferiu arrancar os olhos a negar sua fé, deve ser lembrada como exemplo de resistência.
Com carinho e respeito, fico imaginando Santa Clara de Assis, enrubescida com tanto descaso que governos e desgovernos tratam aquela que de toda a experiência da TV deveria ser a mais importante, a pública - porque a única com potencial para de fato ser de todos nós e para nós. Ela, que viveu o oposto daqueles homens de quem Platão nos contou - por ter sido capaz de ver de seu leito uma missa que era celebrada em outro lugar, guardando analogias com uma transmissão ao vivo e daí ter sido escolhida como a protetora da televisão.
A hora é extremamente delicada. Se não botarmos a boca no trombone e cobrarmos o que nos pertence por direito, podem acabar até colocando pra cuidar da televisão outro santo: São Judas Tadeu, aquele das causas impossíveis.
A primeira vez de Woody Allen
Estreia no próximo dia 30 no serviço de streaming da Amazon o primeiro (e provavelmente único) trabalho de Woody Allen realizado especificamente para a televisão: Crisis in Six Scenes, uma série em 6 episódios.
Ambientada nos turbulentos e revolucionários anos 60, pelo que já pode ser visto nos trailers disponíveis pela internet afora, a série é bem Allen sendo Allen (mas com um retorno ao humor crítico e político, não explorado por ele, praticamente, desde Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de 77). Pode-se antever também uma escolha pelas gags ligeiras (deixadas meio de lado em seus últimos quatro filmes, em favor de uma construção dramática de maior sofisticação - comédias que provocam mais leves sorrisos que gargalhadas propriamente ditas; a delicadeza no lugar do intestinal).
É de se aguardar ansiosamente mesmo para descobrirmos como o diretor e ator de si mesmo se encaixará (?) em um formato televisivo. Logo ele, o primeiro a exigir que um filme seu, ao ser exibido na televisão, fosse transmitido em letterbox, para que a telinha quadrada da TV não cortasse nada das imagens cuidadosamente esculpidas. (Ou seja, a TV é que teria que se encaixar no trabalho dele, e não o contrário.) O filme era Manhattan, de 79, sua obra síntese ainda hoje.
Justiça com miopia
A elogiada minissérie Justiça, da Globo foi um sopro de frescor na TV aberta brasileira em 2016. Os já cantados e decantados problemas técnicos (de áudio, principalmente) não foram o suficiente para macular o volume de qualidades que a obra trouxe para o telespectador - com a narrativa entrecortada assumindo o posto de carro-chefe nesse aspecto.
O que espanta é a imoralidade da emissora ao propor qualquer tipo de discussão ética, mesmo que seja na teledramaturgia - com suas centenas de milhões em impostos sonegados ao fisco e informação sonegada diariamente aos brasileiros em seus telejornais. Um verdadeiro império construído sobre meias verdades.
Mas tudo acaba se encaixando no quadro sintomático desse Brasil modelo "dois pesos, duas medidas" em que vivemos hoje.
Um país que prende petistas a granel (mesmo sem provas) e alivia a barra (comprovadamente) mais que suja de tucanos e outras aves de plumagem superior. Um país onde o ministro da justiça anuncia de antemão os próximos passos da Polícia Federal - como ocorreu com o caso da prisão do ex-ministro Antonio Palocci. Um país onde juízes antecipam suas decisões em entrevistas à imprensa mesmo antes de ter lido os autos do processo que deveriam julgar; onde o presidente do TSE Gilmar Mendes (o sapo-cururu da nação) claramente chantageia o presidente recém-empossado ao decidir que o julgamento da chapa eleita em 2014 ocorrerá apenas no ano que vem. Nesse prazo, caso não se aprovem as contas, Temer é cassado e a Constituição determina eleição indireta para o cargo vacante. Será que golpista que golpeia golpista também teria direito a cem anos de perdão?
Não é mais um país. É um lugar lendário; republiqueta de bananas digna dos melhores romances de realismo mágico (e trágico) já forjados no continente. Terra arrasada de coronéis e inocentes úteis vestidos de verde amarelo; um deserto de hipocrisia sem direito a oásis, onde Justiça não poderia mesmo ser nada além de uma peça de ficção.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.

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